- O Estado de S. Paulo
O inesperado bateu à nossa porta com a morte do candidato à sucessão presidencial Eduardo Campos, que, pela qualidade política de seus movimentos iniciais, já se fazia reconhecer como uma promissora liderança nacional. O enredo de uma competição eleitoral até então fria e acompanhada com distância quase irônica pela população, com os principais candidatos atentos a uma agenda em boa parte comum, se complica ao se perder uma parte importante do script. Atores serão substituídos e papéis principais, no desenho original do seu texto previstos para serem desempenhados por quem se ajustava a eles, por história pessoal e physique du rôle, correm o risco de se tornar postiços e inverossímeis com novo elenco.
Mas - outra complicação - quem escolhe o novo elenco e quem detém poder de veto nessa escolha? A família de Eduardo Campos, por meio do seu irmão e também dirigente do seu partido, o PSB, Antonio Campos, já se pronunciou publicamente a favor de Marina Silva, indicada como candidata a vice na chapa partidária. A coligação que abrigava Eduardo fará o mesmo? E o PSB, com alas refratárias a Marina, que a aceitaram por persuasão do seu líder partidário, estarão propensas, de corpo e alma - como a circunstância exige -, a caminhar nessa direção? As respostas, a esta altura, certamente já devem ser conhecidas pelo leitor.
A decisão, mesmo que positiva, como é de esperar, não virá sem problemas porque, como se sabe, a pretensão de Marina é formar seu próprio partido, com a designação pós-moderna de Rede Sustentabilidade. Nos cálculos do PSB, por sua vez, a campanha eleitoral em curso deveria prestar-se aos objetivos de expansão dos seus quadros e da sua projeção política no cenário nacional, e certamente não se prestará ao papel de barriga de aluguel. A aliança com Marina, sem estar guarnecida pela presença de Eduardo, do seu prestígio e da sua candidatura presidencial, pode ser vista como de alto risco para sua identidade partidária. Risco ainda maior, porém, seria não apresentar candidato algum, ou um nome que discrepe abertamente das linhas estratégicas traçadas por quem foi sua maior liderança.
Somente na aparência tais questões afetam apenas o PSB e as expectativas políticas de Marina quanto à formação do partido Rede. Elas incidem decisivamente sobre os rumos da sucessão presidencial e nos remetem ao reino metafísico do Sobrenatural de Almeida, expressão com que o dramaturgo e bissexto cronista esportivo Nelson Rodrigues caracterizava resultados imprevistos, pela ação imponderável do destino, nas disputas futebolísticas. O enredo conhecido em que ela se travaria era o de uma competição eleitoral entre três forças, Dilma Rousseff, candidata favorita à reeleição, Aécio Neves, como segunda força, e Eduardo Campos, que, embora turbinado pela aliança com a Rede de Marina, mantinha seu foco no horizonte de 2018 e no fortalecimento do seu partido, com remotas possibilidades de vitória por falta de raízes nos maiores colégios eleitorais do País. Eduardo Campos era o fiador da possibilidade de o desenlace da sucessão não transcorrer no primeiro turno, insondáveis as inclinações do seu partido num eventual segundo turno.
No cenário que se esboça com tintas fortes à nossa frente, com Marina Silva à testa da candidatura do PSB, com a sucessão dramatizada pela tragédia que vitimou Eduardo Campos, linhas de campanha e estratégias eleitorais foram condenadas ao anacronismo, com a Nação na expectativa, diante da dramaturgia levada a público na missa campal em frente ao Palácio do Campo das Princesas, sede do governo de Pernambuco, com a reunião dos chefes de fila da classe política brasileira. Nesse dia, de fato, com os sinos a rebate se precipitou, em meio ao luto, o começo da disputa presidencial, quando, para todos os efeitos e independentemente das intenções de muitos, Marina foi tacitamente ungida como a candidata da terceira via do projeto de Eduardo.
Se houver o chamado recall, mesmo que parcial, da votação de Marina em 2010 - quase 20 milhões de votos - e se a parcela do eleitorado até então propensa a anular o voto como forma de protesto se deixar seduzir pelo estilo não convencional da candidata, o tabuleiro muda radicalmente de figura: Aécio, nessa hipótese, poderia ceder seu lugar a ela no segundo turno e, reviravolta ainda mais rocambolesca, a própria situação de favorita de Dilma pode vir a ser ameaçada. O PT, se esse rumo se afirmar, persistirá fiel à sua candidatura, assumindo os riscos letais de perder o poder, especialmente nas circunstâncias adversas em que seus vínculos com os movimentos sociais se esgarçam, tal como demonstrado nas grandes manifestações de junho de 2013, ou, em última instância, reage a ele, desembainhando, afinal, o nome de Lula?
Tantas vezes se disse, o Brasil não é para principiantes - mudanças podem vir quando ninguém espera mais por elas. Está aí: a agenda da campanha presidencial, tal como foi concebida originalmente, caso vingue a candidatura Marina, não poderá escapar de mutações que abriguem temas como "uma nova sociedade" e "uma nova política", ao lado da pauta arquiconhecida da inflação e da gestão administrativa. O imaterial cobra por reconhecimento do seu espaço e isso, numa sociedade que vive ciclos ininterruptos de modernização econômica desde os anos 1930 - e se viciou nas controvérsias sobre ela -, pode, sem favor, ser considerado como uma ruptura com um script desgastado e sem vida.
Pela ação do fortuito, uma eleição que parecia condenada à mesmice e ao desalento quanto à política pode, agora, começar uma nova história e, quem sabe, sob a bandeira inspirada que nos ficou de um dos temas de Eduardo: "Não vamos desistir do Brasil".
Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador da PUC-Rio, Departamento de Ciências Sociais.
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