- O Estado de S. Paulo
Nem golpe, nem impeachment. Um choque de realidade liquidou em três meses o mandato da presidente reeleita com a promessa de manter a gastança e o populismo. A inquilina do Palácio da Alvorada, ainda conhecida como presidente Dilma Rousseff, continua falando o intrigante idioma dilmês, atribuindo os males do País à crise internacional e consultando, ocasionalmente, seu guru e inventor, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Mas a presidente real, governante sem dinheiro, pressionada pelas agências de classificação de risco e dirigente de um país atolado em crise, pouco se assemelha àquela confirmada pelos votos há cerca de meio ano. É uma figura acuada, sem prestígio e sem liderança. As metas de seu governo são ditadas por um ministro da Fazenda, Joaquim Levy, empenhado em desmontar a maior parte da política executada nos últimos dois mandatos petistas.
O desmonte apenas começou e poderá ir muito mais longe, com a contribuição de outros
companheiros. Mas a autonegação da personagem presidencial, até esse ponto, foi insuficiente. A governante reeleita ainda se tornaria, no começo de abril, dependente de um superministro com autoridade para negociar decisões políticas e garantir nomeações para postos importantes. Indemissível, essa figura com poderes incomuns é o vice-presidente Michel Temer, presidente do PMDB, o maior partido aliado, o mesmo dos presidentes do Senado, Renan Calheiros, e da Câmara dos Deputados, Eduard0 Cunha.
Enquanto o PMDB se converte em núcleo principal da articulação política, a operação desmonte avança em várias frentes do governo. "Temos de revisitar as regras para conteúdo local na indústria de petróleo", disse na quarta-feira o ministro de Minas e Energia, o peemedebista Eduardo Braga. "O regime de partilha também deve ser revisitado", acrescentou, referindo-se à exigência de participação da Petrobrás nos leilões de direitos de exploração. Falta saber se ele estava autorizado a discutir o assunto e se a presidente da República aceitará sem dificuldades propostas de mudanças. Mas a declaração do ministro Eduardo Braga, mesmo exploratória, já é um sinal importante de mudanças políticas.
As alterações sugeridas são meras questões de bom senso. Uma empresa envolvida na exploração do pré-sal, uma aventura de custos enormes e riscos muito importantes, deveria concentrar-se em sua atividade básica. Ao promover a conversão da Petrobrás em instrumento de política industrial, o presidente Lula cometeu uma notável e caríssima imprudência. A mesma incompetência administrativa foi exibida pelo governo petista com a exigência de participação da estatal em todos os projetos. De onde sairia dinheiro para isso, especialmente quando a empresa já estava superendividada e ainda sujeita a um estúpido controle de preços?
Mesmo sem o saque investigado na Operação Lava Jato, a empresa teria sérios problemas para se financiar, até porque estava comprometida com grandes projetos orientados por interesses ideológicos e eleitorais, como a construção da Refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco, e a instalação de outra no Maranhão. Cumprir todas essas tarefas e ainda pagar mais caro por equipamentos e componentes de fabricação nacional seria uma façanha quase milagrosa. Se fosse realizada, ainda seria uma besteira de proporções olímpicas, por causa do previsível desperdício de bilhões.
Implantar as mudanças insinuadas pelo ministro Eduardo Braga ajudaria a restabelecer um mínimo de racionalidade na administração da maior estatal brasileira. Tendo estimulado o debate de uma boa ideia, o ministro poderia, no entanto, ter evitado o vexame da declaração seguinte: "Essas políticas não podem ser tachadas de ineficientes, porque foram pilares do nosso desenvolvimento no setor de petróleo e gás". Nenhum cuidado diplomático ou disciplina funcional torna indispensável um despropósito desse calibre. Nem a Petrobrás seguiu de forma invariável a política de conteúdo nacional, embora seus dirigentes tenham procurado disfarçar os desvios.
Um desmonte eficiente na área industrial e comercial deveria incluir a redução do protecionismo, a multiplicação de acordos comerciais com parceiros relevantes e, muito provavelmente, o abandono das amarras da união aduaneira do Mercosul. Já haveria um ganho importante se o bloco retornasse ao status de área de livre-comércio e funcionasse bem nessa condição. Os governos do Paraguai e do Uruguai provavelmente aceitariam sem muita dificuldade a mudança. Afinal, os dois países foram seriamente prejudicados pelo emperramento do Mercosul e pelas limitações típicas de uma união aduaneira.
O Brasil também ganharia com uma revisão ampla da política educacional. Maior atenção à qualidade do ensino e à eliminação de gargalos, com abandono do populismo e da multiplicação eleitoreira de universitários, teria bons efeitos sociais, políticos e econômicos. Mais jovens se tornariam capazes de ganhar a vida sem depender de favores governamentais, por meio do trabalho digno e produtivo. Seria preciso, naturalmente, renunciar ao clientelismo, e para isso a presidente seria forçada a romper com os padrões de ação de seu partido.
Não há alternativa a uma política de desmonte, se se quiser repor o Brasil no caminho da modernidade e da integração nos melhores padrões globais de educação, de produção e de distribuição de oportunidades. Foi fácil, durante alguns anos, sustentar uma política baseada na transferência de recursos, na expansão do crédito e do gasto público e no estímulo ao consumo. Isso rendeu votos e garantiu lealdade política aos distribuidores de bem-estar, mas é materialmente impossível levar muito longe uma estratégia desse tipo. A mudança é tão indispensável quanto trabalhosa. A resistência política será forte e qualquer apoio será custoso.
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* Jornalista
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