• As vezes de comum acordo, outras vezes em rota de colisão, Cunha e Calheiros levam o Congresso a um protagonismo inédito, mas o eleitor que se cuide: nem tudo é o que parece
André Petry - Veja
Agora, na iniciativa mais recente, eles inventaram o seguinte: apresentar um projeto para que os dirigentes das empresas estatais também sejam sabatinados e confirmados pelo Congresso Nacional. A ideia é abrir a caixa-preta das estatais, que permitiu barbaridades como o escândalo da Petrobras. Ela saiu de duas cabeças: a do presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), e a do presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL). A proposta de pôr a casa do povo para fiscalizar as estatais é positiva e obedece a uma tendência internacional. Pelas estatais, correm caudalosos rios de dinheiro do contribuinte. Não há nenhuma razão, administrativa ou financeira, para que os parlamentares não possam dar uma palavra sobre os rumos das estatais.
Com Cunha na dianteira e Calheiros na retaguarda, o Congresso alcançou nos últimos meses um protagonismo como nunca se viu na democracia brasileira. Nem no governo de Sarney, que teve fim melancólico. Nem no último ano do tucano Fernando Henrique, que se arrastou até o encerramento depois do rompimento com o então PFL. Nem no ano passado, quando Dilma concluía seu primeiro mandato num clima de penúria política que já prenunciava o atual desterro presidencial. Agora, a cada semana, por iniciativa de Cunha e Renan, vota-se alguma matéria de relevância, deflagra-se algum debate polêmico, analisa-se alguma proposta que repousava nas gavetas há décadas.
Os cientistas políticos costumam dizer que a Constituição de 1988 brindou o presidente da República com tantos poderes — medidas provisórias, pedidos de urgência, trancamentos de pauta — que o Congresso vivia asfixiado pela potência avassaladora do governo. Os estudiosos chamam esse cenário desigual de "hiperpresidencialismo brasileiro". Com o ativismo febril do Congresso nos últimos tempos, percebe-se que a análise talvez tenha sido precipitada. "Estamos vendo que nosso hiperpresidencialismo não era tão híper assim", diz o professor Jairo Nicolau, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que está especialmente espantado com a agilidade de Cunha. "Ele está ativando a política brasileira de uma maneira impressionante."
Tudo sugere a boa saúde da democracia brasileira, em que, pela primeira vez, o Legislativo deixa de comportar-se com a lendária submissão ao Executivo. Mas as aparências são enganadoras. O protagonismo do Congresso tem mais a ver com interesses paroquiais dos parlamentares, de enfraquecer o governo e conquistar poder dentro do PMDB, do que com interesses do país. A começar pelo fato de que Cunha e Renan, a dupla dinâmica, numa demonstração do cinismo galhofeiro da política brasileira, estão sob investigação por suspeita de envolvimento em, repita-se, barbaridades como o escândalo da Petrobras.
Feitas as contas, as votações relevantes e os debates polêmicos têm sido promovidos às carreiras e o resultado prático é perto de zero, de modo que seu maior efeito tem sido marcar, e aprofundar, a já abissal fragilidade política do governo Dilma. De significativo, mesmo, Câmara e Senado votaram as medidas do ajuste fiscal, que integram a agenda do governo. O resto não saiu do papel. A regulamentação da terceirização da mão de obra, aprovada na Câmara, empacou no Senado, para irritação de Cunha, que ameaçou revidar retardando na Câmara as matérias do Senado. "Pau que bate em Chico bate em Francisco", disse. Nesse caso, Calheiros e Cunha brigam por motivos sonantemente ignorados. A própria reforma política, que Cunha votou com rapidez inexplicada, manteve quase inalterado o atual sistema eleitoral.
Já os interesses umbigueiros dos parlamentares tiveram saldo polpudo neste início de legislatura. Os salários subiram 26,3%. Agora, as excelências ganham quase 34000 reais, mais que a presidente da República.
O fundo partidário triplicou de valor, saltando de 290 milhões para 870 milhões de reais, o maior aumento da história. O governo está obrigado a soltar o dinheiro das emendas orçamentárias dos parlamentares. O "parlashopping", o prédio de 1 bilhão de reais que Cunha quer construir para os deputados, está avançando depois de aparecer de contrabando numa medida provisória. Gastos bilionários na era dos cintos apertados.
Cunha, mais que Calheiros, é aliado vacilante do governo e inimigo convicto do PT. Para o eleitor que simpatiza com essas posições, a atuação de Cunha tem sido um bálsamo, mas é recomendável lembrar uma advertência de Machado de Assis, no seu papel de arguto comentarista político: "É bom não aplaudir por culto, nem censurar por ódio". Tudo o que Cunha tem feito vem embalado com um voluntarismo e uma ponta de truculência que começam a incomodar os colegas. Mesmo aliados o apelidaram de "dom Eduardo I".
O que mais revoltou os parlamentares foi a patrolada na reforma política. Cunha derrubou o relator, jogou seu trabalho de quatro meses no lixo e, no dia seguinte, com um relator que teve 24 horas para trabalhar, pôs o tema em votação.
Graças ao descomunal desprestígio de Dilma, a velha aspiração a uma democracia dotada de um Congresso altivo, autônomo e independente finalmente foi atingida, mas o efeito não tem sido o esperado. No início da semana passada, deputados e senadores já deixaram Brasília para emendar o feriadão. Cunha e Calheiros embarcaram para o exterior. Em vez das habituais críticas pela folga exagerada, sentiu-se um alívio. Enfim, o país terá uma trégua no protagonismo da dupla dinâmica, que não ficará soltando balões de ensaio, fazendo votações apressadas e zelando, no fundo, pelos próprios interesses.
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