- O Estado de S. Paulo
No XXXV Congresso Brasileiro de Direito Constitucional (maio de 2015), coordenado pela professora Maria Garcia, baluarte do ensino jurídico, certa mesa se intitulou “Todo o poder emana do povo”. Thais Novaes Cavalcanti discorreu sobre o tema com teses que suscitam o pensamento. Ela recordou Goffredo Telles, autor da “Carta aos Brasileiros”, em estudo sobre a democracia participativa. O escrito discute a ideia do povo como fonte do poder. A certa altura, Telles indica este articulista em problema atual, dada a farsesca reforma política votada na Câmara dos Deputados.
Cito a referência ao meu texto, pelo professor, para esclarecer o que adianto a seguir: “Por falta de modificações estratégicas na condução do jogo político e sem reformas que definam a estrita obediência dos representantes do povo aos programas dos partidos pelos quais foram eleitos, a luta eleitoral exibe, novamente, aspectos negativos do organismo político” (Roberto Romano, Ética e fé pública, FSP, 15/3/2002)”.
A partir do meu diagnóstico arrazoa Telles: “A providência mais urgente, em hora de sinceridade, é a de alijar as contrafações de partidos, as excrescências e os vícios que maculam ou impedem a verdadeira representação política do povo, nas Casas Legislativas do Governo. O primeiro passo, a medida inadiável da Reforma Política, aconselhada pela própria realidade brasileira, consiste em consagrar, em norma Constitucional, o conceito democrático de partido político. Consiste em deixar firmada, nesse conceito, a relação necessária entre a atuação partidária e uma ideia programática do bem comum, uma ideia que é a razão de ser do partido, e que há de ser proclamada em seu programa registrado. Convém não esquecer que os partidos, com a forma essencial que alcançaram desde o Século XX, devem ser sempre ‘organizações a serviço de uma ideia’ (Maurice Hauriou); ‘porta-vozes de uma doutrina’ (Benjamim Constant); ‘formações que agrupam homens que têm as mesmas concepções’ (Kelsen). Disto se conclui que ‘nenhum partido deve ser tolerado se não persegue um ideal superior, se seu propósito não é o interesse coletivo, se só pretende apoderar-se do governo’ (Alfredo Palácios). Não devem ser admitidas como partido as agremiações sem ideário próprio”. Quanta luz em país tenebroso!
O dr. Dircêo Torrecillas Ramos, no mesmo XXXV Congresso, adiantou a ideia pouco discutida pelos que estudam a reforma política. A fidelidade partidária, para sanções negativas, localiza-se na pessoa do político. Quase nada acontece contra partidos infiéis ao programa apresentado ao povo. A falta de punição traz abusos que aniquilam a base doutrinária dos partidos. Fica mais clara a citação de Goffredo Telles Júnior feita acima. O leitor a releia e a compare ao que se passa nos partidos e instituições estatais brasileiras.
Acrescento um item ao debate “Todo o poder emana do povo”. Tomemos o conceito de “emanação”. Ele mostra o quanto respiramos a metafísica e a teologia em nosso suposto Estado laico e secular. Emanação é o termo neoplatônico para apontar o elo entre seres inferiores e divindade.
Na ordem cristã, a ideia se encontra em Dionísio, o pseudoareopagita. Lorenzo Valla desmascarou na Renascença a mentirosa doação de Constantino, que entregava ao papa a dignidade imperial, terras e poderes terrestres, e também desnudou a lenda de Dionísio. Ela rezava que o escritor assistiu a Paulo pregar aos atenienses: “Quando ouviram falar de ressurreição de mortos, uns escarneceram e outros disseram: A respeito disso te ouviremos noutra hora” (Atos 17:32). Dionísio revelaria a doutrina de Paulo. Lorenzo Valla desmontou a piedosa mentira.
Mas o pseudo-Dionísio calou fundo na vida ocidental. O pensamento tomista sobre o poder traz as marcas da sua Coelestia Hierarchia (Sobre a Hierarquia Celeste), da Ecclesiastica Hierarchia (Sobre a Hierarquia Eclesiástica) e Divinis Nominibus (Sobre os Nomes Divinos). O símile menos inapropriado, afirma Dionísio, para designar Deus é o da luz. Dele emana o brilho que desce ao mundo. Próximos ao resplendor divino estão os arcanjos, as potestades. Abaixo, o clero e os príncipes. Na mais baixa escala, o povo. Tal hierarquia é sagrada, sendo pecado quebrá-la para mudar a sorte dos coletivos e dos indivíduos. A emanação realiza a hierarquia. Do ser divino deriva todo o poder, administrado de maneira vertical e absoluta.
A Reforma luterana abateu a construção teológico-política acima. A igualdade define a vida religiosa. Na Inglaterra do século 17, a revolução puritana decapitou o rei e iniciou a prática da accountability. Nela, não por acaso, os movimentos mais importantes vieram dos “niveladores” (levellers). Some a base do poder absoluto e da hierarquia correspondente. Com eles, cai por terra a ideia de emanação.
Se o poder emana do povo, o ente popular é como o Deus neoplatônico, do qual algo só pode ser dito de maneira negativa ou imagética. Então, a soberania popular é conceito metafísico. Daí que políticos religiosos exijam, como o deputado Cabo Daciolo (ex-PSOL-RJ), mudar a Constituição, para o retorno à hierarquia celeste. No seu entender, todo poder emana de Deus, não do povo. A proposta do deputado escandalizou a esquerda, os progressistas e, porque não, os conservadores.
Mas se juristas usam conceitos metafísicos como o de emanação, séculos após a Crítica da Razão Pura, os leigos também podem almejar coerência nos termos. Emanação, na teologia ou política, supõe hierarquia e transcendência do poder, a recusa de toda imanência política. Daí, talvez, se explique a distância abissal entre representantes e representados na trevosa República brasileira.
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*Roberto Romano é professor da Unicamp, é autor de 'Razão de Estado e Outros Estados da Razão'
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