domingo, 21 de junho de 2015

O penúltimo degrau

• A Polícia Federal prende os donos e executivos de mais duas empreiteiras, atinge o topo da cadeia de comando do esquema de corrupção da Petrobras e está a um passo do ex-presidente Lula.

Rodrigo Rangel, Daniel Pereira e Robson Bonin – Revista Veja

A partir das primeiras delações premiadas de Paulo Roberto Costa, ex-diretor da Petrobras, e do doleiro Alberto Youssef, os responsáveis pela Operação Lava-Jato se deram conta de que estavam lidando com um caso que só ocorre uma vez na vida de um policial, de um promotor ou de um juiz. À medida que os depoimentos se sucediam e mais provas iam sendo encontradas, o esquema foi tomando a forma de uma gigantesca operação político-partidária e empresarial destinada a levantar fundos com contratos espúrios de empresas com a Petrobras. As raízes do esquema começaram a ficar cada vez mais profundas, enquanto sua copa passava a abranger políticos postados em galhos cada vez mais altos. Em abril, Carlos Fernando Lima, um dos procuradores da Lava-Jato, disse em uma entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo que a investigação se tornara tão ampla que chegaria a "mares nunca dantes navegados". Na sexta-feira passada, a Lava-Jato aproou para praias que pareciam inatingíveis, prendendo os presidentes das duas maiores empreiteiras do Brasil — Marcelo Odebrecht, presidente e herdeiro da empresa que leva seu sobrenome, e Otávio Azevedo, o principal executivo da Andrade Gutierrez. O nome da operação da Polícia Federal que fez as prisões não podia ser mais ilustrativo das pretensões dos investigadores — "Erga Omnes", a expressão latina que significa "para todos" e nos tratados jurídicos é usada para proclamar um dos pilares do sistema democrático que diz que ninguém está acima da lei.

A Lava-Jato chegou ao topo? Não existe mais ninguém acima da lei em seu radar investigativo? A resposta é não.

A operação chegou aos mais altos suspeitos do braço empresarial do esquema que desviou pelo menos 6 bilhões de reais dos cofres da Petrobras. O braço político, acreditam os investigadores, pode subir mais um degrau além do ocupado, por exemplo, por João Vaccari Neto, tesoureiro do PT, preso em Curitiba. Os presos da semana passada podem fornecer as informações que ainda faltam para que a lei identifique e alcance quem comandava o braço político do esquema criminoso. Quem permitia o funcionamento de uma engrenagem que abastecia PT, PMDB e PP com dinheiro sujo? Disse o delegado da Polícia Federal Igor Romário de Paula: "A ideia é dar um recado claro de que a lei vale para todos, não importa o tamanho da empresa, seu destaque na sociedade, sua capacidade de influência e seu poder econômico".

O juiz Sergio Moro determinou a prisão de Marcelo Odebrecht e Otávio Azevedo, os presidentes da Odebrecht e da Andrade Gutierrez, por considerar que os dois "capitaneavam" o cartel de empresas que ganhava contratos da Petrobras em troca do pagamento de propina a funcionários da estatal e a políticos. Em seu despacho, Moro registrou que delatores do petrolão haviam dito que a Odebrecht pagara subornos no exterior por meio da Constructora dei Sur, sediada no Panamá. A Odebrecht vinha negando ter relação com a Del Sur. Moro também anotou a existência de um depósito feito pela Odebrecht numa conta no exterior controlada por Pedro Barusco, o delator que servia ao PT e prometeu devolver aos cofres públicos 97 milhões de dólares. O juiz determinou a prisão de outros cinco executivos, três da Odebrecht e dois da Andrade Gutierrez, e expediu 38 mandados de busca e apreensão. As duas empreiteiras são acusadas de pagar mais de 700 milhões de reais em propinas.

Resta pegar a estrela principal no firmamento governista. Os procuradores e os delegados têm elementos suficientes para desconfiar que a estrela dava expediente no Palácio do Planalto. Há apurações em andamento sobre os pagamentos milionários recebidos pelas empresas de consultoria dos ex-ministros da Casa Civil José Dirceu e Antonio Palocci. Os investigadores agora já podem mirar um degrau acima — o ponto de convergência entre corruptos e corruptores. Segundo o Ministério Público, o esquema de desvio de recursos da Petrobras passou a funcionar de forma organizada em 2004, no primeiro mandato de Lula. Todos os diretores da estatal presos e investigados por participação no esquema foram nomeados pelo petista. Ex-diretor de Abastecimento e delator do petrolão, Paulo Roberto Costa era chamado carinhosamente de "Paulinho" por Lula. Essa relação de proximidade se estendia a empreiteiros presos no ano passado, como Ricardo Pessoa, da UTC, e Léo Pinheiro, da OAS, que sempre encontravam pretextos para dar dinheiro ao ex-presidente, fossem palestras ou viagens de negócios em que ele atuava como propagandista das empresas.

A Marcelo Odebrecht atribui-se a liderança no meio empresarial da campanha "Volta, Lula", que, no ano passado, tinha como objetivo minar a candidatura de Dilma Rousseff em favor da busca de um terceiro mandato para Lula.

Mensagens descobertas pela Polícia Federal mostram que os empreiteiros exerciam influência sobre a agenda de Lula e usavam o prestígio dele para facilitar negócios em diversos países. Em contrapartida, como se sabe, o ex-presidente e alguns de seus familiares foram muito bem recompensados (veja o quadro ©). Numa mensagem enviada em novembro de 2012, um executivo da OAS alerta Léo Pinheiro sobre a possibilidade de Lula viajar ao Catar, onde a construtora teria um "grande volume de negócios", e pede a Pinheiro que cheque a informação. "Devo estar com ele quinta-feira à tarde. Falo com ele", respondeu Pinheiro. Em novembro de 2012, Lula viajou a vários países e defendeu interesses da Odebrecht e da Camargo Corrêa. Um mês antes, em outubro de 2012, Pinheiro relata ao mesmo executivo da OAS que esteve pessoalmente com Lula. Na mensagem, chama o ex-presidente pelo apelido, "Brahma" — não se sabe se a referência é à marca de cerveja ou ao deus hindu que forma com Vishnu e Shiva o triunvirato responsável pela criação, manutenção e destruição do mundo. Seja como for, Lula-Brahma realizaria algum serviço na África. "Estive essa semana com o Brahma. Contou-me que quem esteve aqui com ele foi o presidente da Guiné Equatorial, pedindo-lhe apoio sobre o problema do filho. Falou também que estava indo com a Camargo para Moçambique x Hidrelétrica x África do Sul."

Lula-Brahma tinha seus privilégios. "Léo, colocamos o avião à disposição do Lula para sair amanhã ao meio-dia. Seria bom checar com o Paulo Okamotto se é conveniente irmos no mesmo avião", diz um executivo da OAS. Paulo Okamotto é presidente do Instituto Lula e zelador das contas pessoais do ex-presidente. Convocado para depor na CPI da Petrobras, ele vive repetindo que a relação do

chefe com as empreiteiras é transparente. Desde que deixou a Presidência, Lula viajou várias vezes ao exterior para divulgar suas propostas de combate à fome e à miséria e defender os interesses de grandes empresas brasileiras em países da África e da América Latina. Em 2011, Lula e o companheiro Dirceu foram ao Panamá, onde defenderam interesses da Odebrecht. No mesmo ano, numa viagem internacional em que representou o governo brasileiro, Lula incluiu na comitiva um diretor da Odebrecht, Alexandrino Alencar, que também foi preso na última sexta-feira, acusado por um dos delatores do petrolão de pagar propina no exterior.

Lula não atua como lobista só por amor à pátria. Conforme VEJA revelou, a OAS reformou um sítio usado por ele no interior de São Paulo. Além disso, construiu no Guarujá o tríplex que pertence à família do ex-presidente. As empreiteiras também o contrataram por valores que, segundo Okamotto, chegam a 300 000 reais por palestra. Havia uma simbiose perfeita entre as partes. Foi por isso que os empreiteiros se jogaram de corpo e alma no movimento "Volta, Lula". As mensagens descobertas pela Polícia Federal são cristalinas. Nelas, aparecem restrições pesadas à presidente Dilma Rousseff e uma torcida desabrida pelo retorno do petista ao poder. "O clima não está bom para o governo, o modelo dá sinais de esgotamento e o estilo da número um tem boa parte da culpa", diz um executivo da OAS em dezembro de 2012. Em novembro de 2013, a queixa se repete. "A agenda nem de longe produz os efeitos das anteriores do governo Brahma (A senhora não leva jeito, discurso fraco, confuso e desarticulado, falta de carisma)."

A partir de 2013, Lula fez questão de vazar para a imprensa que os empresários estavam insatisfeitos com os rumos do governo Dilma. A presidente, então, passou a receber alguns deles em audiência. De nada adiantou.

Nos bastidores, o "Volta, Lula" avançou em ritmo frenético. Em abril de 2014, a seis meses da sucessão presidencial, a própria Dilma confidenciou a auxiliares o temor de ser substituída como candidata do PT. A mudança não ocorreu. Foi a primeira frustração dos empreiteiros.

A segunda se deu em novembro do ano passado, quando a primeira leva de empresários e executivos foi presa pela Polícia Federal. Eram evidentes os sinais de que o petrolão ruía. Foi nesse período que Marcelo Odebrecht avisou aos seus contatos no PT e no governo: "Não cairei sozinho". Se o maior e mais importante empreiteiro do país cumprir a palavra, a estrela-guia do lado governista do balcão será mesmo a peça que falta para que no Brasil a justiça seja mesmo Erga Omnes.

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