Luís Antônio Giron - Valor Econômico / Eu & fim de semana
SÃO PAULO - Em 2006, três pesquisadores começaram a vasculhar o arquivo de Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908) na Academia Brasileira de Letras (ABL) para organizar sua correspondência. O trio formado pelo escritor, acadêmico e diplomata Sergio Paulo Rouanet e as professoras Irene Moutinho e Sílvia Eleutério imaginou que juntaria não mais que 600 cartas, entre recebidas e escritas - o que os especialistas denominam correspondência passiva e ativa. Nove anos depois, levantaram o dobro de documentos. Além disso, descobriram um Machado de Assis inesperado. Pouco restou da imagem do áulico recluso, niilista e ensimesmado que seus biógrafos e analistas pintaram ao longo do século XX, até para tentar combinar o autor à obra, composta por 200 contos, cinco livros de poemas, nove peças de teatro, cerca de 600 crônicas e nove romances. Ao contrário, depararam com uma criatura de sangue, inteligente, ativa e amante da vida.
"Talvez estivéssemos em busca do misantropo, mas topamos com um homem que experimentou intensamente as várias fases de sua vida", diz Rouanet. "Um jovem jornalista boêmio que namorava atrizes e dizia palavrões que depois lutou para se tornar um escritor respeitável, o autor no auge reconhecido na América e na Europa e, por fim, o senhor que, em vez de se acomodar à ideia da morte, se envolveu com questões diplomáticas, culturais e íntimas, testemunhando a transformação urbana do Rio de Janeiro, lúcido e ativo até o último suspiro."
O novo Machado se completa com a publicação do volume "Correspondência de Machado de Assis - Tomo V - 1905-1908" (Academia Brasileira de Letras, 546 págs., R$ 90,00), coordenada e apresentada por Rouanet, reunida, organizada e comentada por Irene e Sílvia. O resultado compreende 1.178 documentos que cobrem 51 anos de correspondência de Machado, dos 18 anos 69 anos. Ao todo, 2.690 páginas, revistas, analisadas e repletas de saborosas notas de rodapé que esclarecem nomes de possíveis amantes do jovem escritor até os medicamentos que usou no fim da vida. Trata-se de um monumento bibliográfico que obriga a alteração profunda das ideias adquiridas, a ponto de exigir uma nova biografia do autor. As que saíram até agora são incompletas ou infiéis ao personagem real.
"É uma novidade completa, e quem se interessa minimamente por Machado de Assis deve comprar e folhear", afirma o estudioso e escritor britânico John Gledson, o maior especialista em Machado no plano internacional.
O "Caderno Suplementar" do quinto volume da "Correspondência" traz carta-prefácio de Machado ao livro "Legislação Servil", de Manuel Ernesto Campos Porto, advogado abolicionista que compilou as leis que, desde o início do Império, colaboraram para a extinção da escravidão. No texto, publicado dois meses antes da Abolição, Machado elogia "os esforços praticados legislativamente entre nós, acerca dessa grave matéria".
"A conclusão dos trabalhos da 'Correspondência' deve ser relativizada por constituir obviamente uma obra em movimento - que resulta também em uma biografia em movimento", afirma Rouanet. "Na verdade, ainda espero que surjam cartas de Machado encontradas em alguma velha quinta portuguesa." Quando fala assim, ele alimenta um sonho específico. Gostaria de achar as cartas de Machado ao cunhado português Miguel de Novais, irmão de sua mulher, Carolina Xavier de Novais, a quem o escritor submetia seus textos antes de publicá-los. De Novais restaram poucas cartas, como aquela na qual comenta o conteúdo do volume "Várias Histórias", de Machado, que consta do volume III da "Correspondência". Novais costumava fazer observações e corrigir os erros de Machado.
"Espero viver para pôr a mão nessas cartas", diz Rouanet. Até porque continua a ser surpreendido com documentos inéditos. Ainda nesta semana, depois de ter em mãos o quinto volume impresso, recebeu uma carta inédita que, segundo ele, deveria constar da "Correspondência": é do jurista baiano Eduardo Ramos (1854-1923) e enviada em 1900 a Machado de Assis, então presidente da ABL. Ramos apresenta ao escritor o projeto que resultou na Lei nº 726, que reconheceu ABL como instituição de utilidade pública e permitiu que se instalasse em prédio público e imprimisse suas publicações na Imprensa Nacional. "Ramos era uma espécie de Rouanet da época", observa Rouanet, referindo-se à lei de renúncia fiscal que criou durante o governo Collor.
"Ramos concedeu a renúncia fiscal à academia, cedendo às pressões de Machado, que queria assegurar a oficialização da instituição que presidia. Assim, Ramos beneficiou a academia, mas até hoje causa empecilhos." Um deles afeta o acesso à própria correspondência de Machado de Assis: a lei impede a venda de livros da ABL em grandes tiragens - as publicações contam com tiragens médias de mil exemplares. Isso tem trazido problemas aos autores. "O quarto volume da 'Correspondência', por exemplo, divulgado no fim de 2012, já se tornou uma raridade", lamenta Irene Moutinho, que já está revisando o primeiro volume da "Correspondência". Rouanet estuda um esquema de coautoria para permitir a difusão das edições acadêmicas.
Os percalços prejudicaram a pesquisa das cartas no término do quinto volume. O trabalho foi interrompido durante alguns meses por causa da reforma da biblioteca da ABL e o volume de cartas aumentou dramaticamente no fim da vida de Machado, algo com que Rouanet e assistentes não contavam. "Os três anos e nove meses finais de Machado são os mais intensos nas trocas de cartas", observa Irene. "Tanto que o quinto volume compõe 30% da correspondência total." São 340 documentos, entre cartas íntimas, oficiais, cartões-postais e bilhetes.
Eles informam que Machado sofria crises de depressão, ataques epilépticos, falhas de memória e um câncer intestinal que o mataria em 29 de setembro de 1908, aos 60 anos. A atmosfera de "fim de caminho", como diz Rouanet, afetou os três pesquisadores, tão envolvidos ficaram com a lenta agonia do escritor. Esse envolvimento se deveu, além da preferência literária que devotam a Machado, à inovação que Rouanet impôs ao estudo da correspondência machadiana. Ele adotou o critério cronológico, diferente da divisão por correspondentes que outras edições usaram até então. "Nosso método permitiu o rastreamento dos ecos biográficos e da obra de um escritor que se pautou pela discrição", conta Rouanet. "Acompanhar as cartas no correr do tempo permitiu recuperar a dinâmica da vida de Machado como testemunha dos dias que se desfiavam."
De acordo com Irene Moutinho, houve um persistente cerco amistoso ao escritor que acabava de enviuvar de Carolina e se sentia totalmente só pela primeira vez na vida. "Amigos como Mário de Alencar, Magalhães de Azeredo, Joaquim Nabuco e Salvador de Mendonça passaram a acompanhá-lo mais de perto."
Os companheiros lhe deram ânimo para que mantivesse os afazeres como presidente da ABL e escritor produtivo. Entre 1905 e 1908, ele retornou ao ânimo dos anos de juventude, quando participava da vida da capital. O velho escritor parecia usar a ação para abafar a tristeza. Ainda que debilitado e deprimido nos últimos meses, procurava manter atividade intensa. Algo bem diferente da figura do velho recluso que seus biógrafos inventaram.
Machado de Assis encontrou tempo de lançar, em 17 de julho de 1908, o romance "Memorial de Aires" - que viria a ser o seu derradeiro. Nesse dia, o editor Garnier mandou entregar um exemplar ao crítico José Veríssimo (na época, os críticos não recebiam provas com antecedência), que estava resfriado. Veríssimo escreveu uma carta a Machado às 11 horas do dia seguinte, entusiasmado com o livro que acabara de ler. O escritor agradeceu a leitura, mas não mordeu a isca lançada por Veríssimo, então o principal crítico brasileiro: reconhecer que "Memorial de Aires" era uma obra autobiográfica.
Ele revelou o caráter autobiográfico do "Memorial" a Mário de Alencar, poeta, acadêmico de 36 anos, filho de seu companheiro de juventude José de Alencar e seu amigo mais próximo. Tanto que Mário tivera a primazia de ler as primeiras provas do livro, em dezembro de 1907, e logo descobriu que Aires e Dona Carmo eram personagens baseados em Machado e Carolina. No entanto, Machado pediu que não contasse isso a ninguém. Quando outros amigos, como Veríssimo, começaram a comentar o fato, ele acusou Mário de inconfidência. O jovem poeta se defendeu. Quando o volume da Garnier finalmente chegou ao porto vindo de Paris, depois de longa espera, Machado já tinha feito as pazes com seu pupilo.
Além de escrever, mandar e receber cartas sem cessar, Machado viajava regularmente de bonde de sua casa no Cosme Velho ao centro do Rio para despachar na academia, saber notícias de amigos ou participar de banquetes e chás campestres, além de cumprir missões diplomáticas. A cidade se modernizava e ele comentava com melancolia as transformações urbanas e não se reconhecia mais no Rio. Muitas vezes tomava uma lancha para recepcionar dignitários estrangeiros que aportavam na Baía de Guanabara, recomendados pelo barão do Rio Branco. Foi o caso do historiador italiano Guglielmo Ferrero. A bordo de uma lancha, Machado buscou Ferrero e mulher no navio e serviu de cicerone ao casal em um passeio de lancha pelos pontos turísticos do Rio. Em outra ocasião, em 1907, como mostram as cartas, Machado foi incumbido por Rio Branco de recepcionar no Cais Pharoux o futuro presidente francês Paul Doumer.
Enquanto esperava a celebridade estrangeira, Machado sofreu um ataque epiléptico, captado pelo fotógrafo Augusto Malta e divulgado nos jornais. Machado, que não mencionava a palavra epilepsia nas cartas, manteve a discrição. Mas se sentiu na obrigação de responder a uma carta preocupada do jovem poeta mineiro Belmiro Braga, justificando o mal-estar como uma "vertigem".
Ele não se referia à epilepsia nem aos amigos mais íntimos, como Mário de Alencar. O velho Machado se via como um padrinho de Mário. Ambos sofriam de epilepsia. Os dois amigos, hipocondríacos, trocavam receitas de medicamentos contra a doença comum e combinavam encontros que quase nunca se realizavam. Marcar encontros era uma forma de Mário ficar próximo de Machado. Mário também era acometido de nevrose, um mal que os médicos atuais chamariam de síndrome de pânico: evitava sair de casa na Tijuca e até uma espinha inflamada no pescoço servia como desculpa para não ver seu mestre Machado. Daí as cartas, numerosas. Entre 1905 e 1908, foram 78.
Na última carta a Mário, Machado comparou a sua enfermidade à do escritor francês Gustave Flaubert: "Meu querido amigo, hoje à tarde, reli uma página da biografia do Flaubert; achei a mesma solidão, e tristeza e até o mesmo mal, como sabe, o outro..." Referia-se, obviamente, à epilepsia. A carta foi enviada em 29 de agosto de 1908, um mês antes de sua morte.
É preciso observar que Flaubert e Machado não tinham em comum só a epilepsia. Ambos escreveram um volume portentoso de cartas que, reveladas postumamente, têm servido para compreender tanto sua intimidade como seu gênio literário. Um Machado, mais vivo e humano, surge da correspondência agora revelada em sua totalidade. Tomara que os pensadores literários brasileiros façam com ele o que Jean-Paul Sartre fez com Flaubert na biografia monumental "O Idiota da Família". Até agora, os estudiosos confundem a pessoa de Machado com a de Dom Casmurro. Talvez tenham de pensá-lo como o tranquilo e bondoso Conselheiro Aires.
Trechos das cartas
Mudanças no Rio
"Justo é que os filhos da cidade vão deperecendo, quando ela vai remoçando. Não digo desta, porque há de saber tudo, e terá lido as notícias da inauguração da Avenida Central. Mas por muito que leia e creia, não imaginará a mudança que foi e está sendo, nem a rapidez do trabalho. Mudaram-me a cidade, ou mudaram-me para outra. Vou deste mundo, mas já não vou da colônia em que nasci e envelheci, e sim de outra parte para onde me desterraram." (Machado de Assis a Oliveira Lima, 20 de novembro de 1905)
Providências para a morte
"Não me parece que de tantas cartas que escrevi a amigos e a estranhos se possa apurar nada interessante, salvo as recordações pessoais que conservarem para alguns. Uma vez, porém, que é satisfazer o seu desejo, estou pronto a cumpri-lo, deixando-lhe a autorização de recolher e a liberdade de reduzir as letras que lhe pareçam merecer divulgação póstuma." (Machado a José Veríssimo, 21 de abril de 1908)
Da árvore de Torquato Tasso
"Escrevo ao Mário de Alencar pedindo-lhe que venha à minha casa, quando eu morrer, e leve aquele galho do carvalho de Tasso que Você me mandou e o Graça me entregou em sessão da Academia. A caixa em que está com o documento que o autentica e a sua carta ao Graça peço ao Mário que os transmita à Academia, a fim de que esta os conserve como lembrança de nós três; você, o Graça e eu." (Machado a Joaquim Nabuco, 8 de maio de 1908)
O crítico entusiasmado
"Você já nos tinha acostumado às suas deliciosas figuras de mulher, mas creia-me, excedeu-se em Dona Carmo. Ah! Como é verdade que a grande arte não dispensa a colaboração do coração..." (José Veríssimo a Machado, 18 de julho de 1908, sobre "Memorial de Aires")
"Musa companheira"
"(...) Mais adiante vê desprenderem-se de suas páginas as borboletas azuis da saudade. No final sob o adejar de grandes asas brancas, ouve um chamado vindo de muito longe, a que respondes do fundo da cantiga do rei trovador, e discreto como Aires, para não perturbar o mudo colóquio de dois corações amantíssimos, retira-se sem rumor de passos porque quem te chama é a tua Musa companheira (...), a Esperança." (Salvador de Mendonça a Machado, 1º de setembro de 1908)
Saudade da juventude
"A tua boa carta trouxe ao meu espírito afrouxado não menos pela enfermidade que pelos anos que aquele cordial de juventude que nada supre neste mundo. É meu Salvador de outrora e de sempre; é aquele generoso espírito a quem nunca faltou simpatia para todo esforço sincero. Tal te vejo há meio século, meu amigo (...) Íamos entrar nos vinte anos, verdes, quentes e ambiciosos. Já então nos prendia a ambos a afeição que nunca mais perdemos." (Machado a Salvador de Mendonça, 7 de setembro de 1908. Essa é considerada a sua última carta)
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