Maria Cristina Fernandes – Valor Econômico / Eu & fim de semana
SÃO PAULO - Nos meses derradeiros de sua vida, o senador Pinheiro Machado, eleito tirano número um da República Velha pela imprensa, era alvo de protestos diários de populares à porta do Palácio do Conde dos Arcos, antiga sede do Senado Federal, no centro do Rio. Um dia, aconselhado por assessores a sair pela porta dos fundos, desceu as escadarias do prédio que hoje abriga a faculdade de direito da UFRJ e ordenou ao chofer de seu coche: "Nem tão devagar que pareça afronta nem tão depressa que pareça medo".
Fazedor de presidentes, mandarim do Senado e interlocutor privilegiado das oligarquias regionais, Pinheiro Machado deixou de ditar o ritmo da república no dia 8 de setembro de 1915. Aos 63 anos, foi apunhalado nas costas, no saguão de um hotel, pelo também gaúcho Francisco Manso de Paiva Coimbra. A alegação do padeiro de 33 anos foi de inconformidade com a morte de um estudante em Porto Alegre e com a decisão de Pinheiro Machado de lançar outro gaúcho, o marechal Hermes da Fonseca, ao Senado. As insatisfações com Pinheiro Machado, no entanto, extrapolavam os pampas.
O deputado pernambucano Gonçalves Maia canalizou esse desejo coletivo em projeto de lei: "Artigo 1º - Suprima-se o senador Pinheiro Machado. 2º - Revogam-se as disposições em contrário".
Nestes cem anos de sua morte, nenhum parlamentar, nem mesmo a soma de Eduardo Cunha e Renan Calheiros, fez sombra ao poder que exerceu sobre os destinos da nação.
Filho de um deputado federal, José Gomes Pinheiro Machado nasceu em Cruz Alta (RS) e foi criado entre as bravuras de peões e escravos na fazenda do pai. Matriculado na Escola Militar do Rio aos 15 anos, de lá fugiu para ser voluntário na Guerra do Paraguai. Resgatado doente pelo pai, deixaria novamente o Rio Grande do Sul para ingressar na Faculdade de Direito de São Paulo.
De volta ao seu Estado, se engajaria no Partido Republicano Conservador antes de entrar em nova guerra, a da Revolução Federalista, em defesa da recém-proclamada República. Os combates lhe renderam fama de degolador e um mandato no Senado.
Foi o principal operador de uma república sem povo. O país mal acomodava a massa de alforriados e de imigrantes numa economia em que os disputados subsídios à agricultura e à indústria se prestavam a desenvolver mais as oligarquias locais do que o país. Foi uma época de rebeliões que fazem as atuais manifestações de rua ou do salão verde da Câmara dos Deputados parecerem arruaças juvenis.
Firmou-se como articulador de marechais sem pendor para a negociação política. Ao maior dos seus aliados, Hermes da Fonseca, é atribuído o conselho ao sucessor, Venceslau Brás: "O Pinheiro é tão bom amigo que até governa pela gente".
Alicerçado por uma sucessão de presidentes, manobrou para formatar bancadas avançando sobre a comissão que decidia em quem os eleitores haviam votado. Firmou alianças com chefes regionais para fazer frente às bancadas de Minas e São Paulo, que se alternavam no comando café com leite. Foi um dos grandes aliados de padre Cícero Romão Batista, cuja liderança sobre seus romeiros ultrapassava a força de quaisquer dos pastores eletrônicos de hoje.
No prefácio da coletânea de discursos de Pinheiro Machado organizada pelo ex-senador Pedro Simon, o ex-presidente José Sarney o descreve como desprovido de verniz intelectual, mas fornido de sagacidade para transitar na teia de facções e fidelidades da política de governadores.
"Torna-se a figura lendária que vai dominar um grande espaço na vida republicana, com um estilo próprio e, também, muito fácil de atrair inimizades e resistências. Passa a ser o homem mais influente, porém o mais responsabilizado por tudo de ruim que acontece no governo", escreveu Sarney.
Em muitos momentos da República, o poder passou muito mais por sua casa, um palacete no Morro da Graça, em Laranjeiras, do que pelo Catete. Aliava sagacidade à valentia de general de fronteira que chegou a ser preso depois de atentado contra Prudente de Morais. Num tempo em que o presidente ameaçava resolver as crises nos Estados com intervenções armadas, Pinheiro Machado desafiava seus detratores à reparação pelas armas. Num desses duelos, chegou a balear o dirigente do "Correio da Manhã", Edmundo Bittencourt.
Escolhia seus aliados com régua e compasso. Um dia recebeu três candidatos a um cargo federal. No meio da reunião, puxou um canivete, começou a picar seu fumo de corda e, de propósito, deixou cair um pedaço. Dois dos moços se jogaram ao chão para lhe devolver o naco. O terceiro fingiu que não viu. Finda a reunião, puxou-o pelo braço: "A vaga é tua".
Ao buscar seus discursos nos anais do Senado, Simon reforçou a percepção que tinha de seu conterrâneo: "A de um político afastado da ribalta, mais voltado para a atividade de gabinete, interessado apenas nas manobras de bastidores, concentrado principalmente na costura dos grandes acordos políticos. A imagem que sempre se faz, enfim, de uma eminência parda".
Rebatia, da tribuna, acusações que iam do desvio de remessas do Exército para tropas sob seu comando até a manipulação do câmbio. Defendia-se com bravura que remete à de seus sucedâneos enredados na Lava-Jato.
Um dia leu, da tribuna, a manchete de um jornal gaúcho - "Enorme escândalo no Rio Grande do Sul. Contrabando de charque. A imprensa rio-grandense ataca o senador Pinheiro Machado como protetor e talvez sócio dos contrabandistas".
"Tenho o mau hábito de não guardar papéis", começa por se defender, antes de ler carta a um estancieiro aliado em que o advertia sobre a concentração de charqueadas em municípios de fronteira sem gado suficiente para abastecê-las. Alude a interesses de seus detratores citando um deles: "Pinheiro, estou vivendo da tua popularidade".
Rui Barbosa foi o mais notório adversário de Pinheiro Machado. Unidos pela causa republicana, acabariam se apartando no Encilhamento. Premido a aliançar o novo regime com as elites regionais, o então ministro da Fazenda pôs em curso uma política de crédito de fazer inveja ao BNDES.
A generosidade pressionou a dívida pública e gerou uma crise inflacionária que ainda abalava o país quando Campos Salles, ao assumir, foi buscar a ajuda de Pinheiro Machado para aquietar os descontentes.
A animosidade entre o "águia de Haia" e o "quero-quero dos pampas" cresceu quando Pinheiro enfrentou a campanha civilista de Rui ao eleger Hermes da Fonseca à Presidência.
Um dia, quando estava no auge de seu prestígio, depois de retornar de Haia, Rui Barbosa discursava sob insistentes apartes da bancada conservadora. Recorreu a Pinheiro Machado, que lhe respondeu:
- Eu me defenderei enquanto vossa excelência se manter na tribuna.
Rui Barbosa não titubeou:
- Perdão, enquanto eu me mantiver é o que o nobre senador quer dizer.
Pinheiro Machado não se intimidou.
- Agradeço a lição de vossa excelência, que é um mestre consumado da língua portuguesa. Realmente quase nada sei. Estudei pouco porque enquanto vossa excelência rostilha os cotovelos debruçados sobre os livros, eu, com 14 anos apenas, fugia para defender a pátria nos inóspitos campos do Paraguai.
Pinheiro Machado segurava a ameaça de correligionários contra o tribuno baiano, que chamara o Senado de "estrebaria". Respondia às perorações morais do autor da "Oração aos Moços" com a malícia política que lhe fizera a fama.
Rui Barbosa discursava numa sessão presidida por Pinheiro Machado quando notou que seu tempo na tribuna havia se esgotado. Pediu então ao presidente da Casa que lhe desse mais alguns minutos de prorrogação para terminar seu discurso.
- É a primeira vez que vou ser aquilo de que vossa excelência tanto me tem acusado, um ditador nesta casa.
Magnânimo, assentiu:
- Pode continuar seu discurso.
Pinheiro Machado previra sua morte em entrevista ao jornalista João do Rio.
- Morro na luta, menino. Eles me matam, mas pelas costas. São uns pernas finas.
Manso de Paiva era desempregado havia meses, mas não acumulara dívidas na pensão em que morava. Condenado a 30 anos de prisão pelo assassinato, foi indultado por Getúlio Vargas, em 1935. Viveu por mais 30 anos em Ricardo de Albuquerque, na zona norte do Rio, sem revelar se trabalhara por encomenda.
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