quinta-feira, 30 de julho de 2015

Maria Cristina Fernandes - Passaporte para o dinheiro

- Valor Econômico

• Corredor polonês aguarda a repatriação de ativos

A repatriação de ativos é desses projetos que reúnem todos os elementos para se entender a crise e as dificuldades para superá-la.

Nascido do projeto de um senador do PSOL, Randolfe Rodrigues (AP), foi encampado pelo Ministério da Fazenda e tem um substitutivo mais ameno do líder do governo no Senado, Delcídio Amaral (PT-MS).

Integrante da CPI do HSBC, o senador do PSOL encara o projeto como a primeira tentativa de o Brasil taxar fortunas, enquanto a Fazenda prefere situá-lo no rol de alternativas para fazer caixa. A inusitada aliança é alvo da oposição do presidente da Câmara dos Deputados, que justifica sua resistência com o argumento de que o projeto não é pauta do Legislativo.

O deputado que se orgulha de ter dado celeridade a projetos de iniciativa legislativa prefere que o governo mande o seu. É uma maneira de a tramitação ser reiniciada nos moldes a serem estabelecidos pelo presidente da Câmara para sua negociação.

Ao longo dos últimos anos, o Brasil aderiu a vários acordos internacionais que, na tentativa de combater a lavagem de dinheiro, permitem a troca de dados entre fiscos.

A partir dessas informações, o governo estima que os ativos não-declarados de brasileiros no exterior podem chegar a US$ 400 bilhões. É mais do que o Brasil dispõe para enfrentar turbulências financeiras, as chamadas reservas internacionais.

Aí se misturam desde o dinheiro do tráfico até o de investidores que fizeram remessas sem declará-las ou de executivos que trabalharam alguns anos no exterior e voltaram ao Brasil sem trazer o dinheiro. O projeto exclui o dinheiro do crime, mas PSDB o obstrui sob a alegação de que os recursos da corrupção ganharão sinal verde para entrar no país. Questiona ainda o projeto como fonte de recursos para a compensação da desoneração do ICMS, cuja duração extrapola a da repatriação.

Quem aderir se livra de ser processado por sonegação, mas terá impostos e multas a pagar que comprometem 35% dos recursos repatriados. A arrecadação teria potencial de chegar a R$ 100 bilhões, mas a Fazenda parece estar conformada com um teto de R$ 30 bilhões. O substitutivo do senador Delcídio Amaral (PT-MS), líder do governo, estima que as pretensões brasileiras são modestas para padrões internacionais. Na Itália, o instituto da repatriação conseguiu recuperar cerca de € 100 bilhões, e a Turquia, € 47,3 bilhões.

Está previsto que metade da arrecadação vá para o fundo de compensações da unificação do ICMS e a outra seja repassada a Estados e municípios, mas tributaristas sugerem descontar em 50% o pagamento à vista da taxação devida.

Ainda está para começar a queda de braço pela vinculação desses recursos a gastos pré-determinados. O risco de ver o projeto tão desidratado quanto o foram as medidas provisórias da desoneração foi o que levou o Planalto a buscar a ajuda dos governadores na reunião de hoje.

Há quem veja pouca responsabilidade dos bancos na identificação da origem dos recursos repatriados. Teme-se ainda que quem já estiver sendo processado no Brasil por sonegação e evasão de divisas pode se sentir no direito de questionar a anistia àqueles que aderirem à repatriação.

Há margem, ainda que estreita, para a redução da alíquota do imposto previsto, mas tributaristas têm recomendado a seus clientes que a repatriação foi a saída que restou ao cerco cada vez mais fechado das autoridades financeiras internacionais sobre o dinheiro sem carimbo.

Na visita que fez aos Estados Unidos a presidente Dilma Rousseff assinou o acordo de bitributação que havia sido aprovado pelo Congresso no ano passado. Por esse acordo, o brasileiro que tiver conta nos Estados Unidos e não declará-la corre o risco de ser processado por evasão de divisas e sonegação. Até a Suíça está prestes a perder o grau de paraíso fiscal.

No convescote empresarial da semana, o presidente da Câmara se disse muito empenhado em evitar o rebaixamento do Brasil, mas bombardeou a proposta de repatriação. Em contrapartida, sugeriu o corte de ministérios e cargos comissionados, reconhecendo que a medida, de pouco impacto fiscal, contribuiria no 'plano simbólico' para mostrar o compromisso do país com a moralidade pública.

Foi muito aplaudido nesta e em todas as ocasiões em que demonstrou estudada afinidade com a pauta empresarial. Disse estar mais do que comprometido com o ajuste fiscal, mas justificou a manutenção de desonerações que não geraram emprego mas o mantiveram.

Do auditório surgiram perguntas, de executivos filiados a movimentos que organizam a manifestação de 16 de agosto, sobre a condução da Câmara em eventual processo de impeachment mas nenhuma relacionada à investigação do Ministério Público Federal sobre as acusações que lhe foram feitas ao presidente da Casa na Operação Lava-Jato. Face à presidente Dilma Rousseff, Eduardo Cunha foi tratado como um mal menor.

No evento, os economistas Roberto Giannetti da Fonseca e Paulo Rabello de Castro expuseram o resumo de um documento em que listam as alternativas para o Brasil sair do que chamam de 'Estado de Desconfiança'.

O texto advoga o redesenho do ICMS, sem revogar os incentivos já concedidos, a despeito de não ter uma única linha sobre o projeto de repatriação com o qual o governo pretende arrumar crédito para os Estados. As propostas são anunciadas como "algo mais abrangente, que não fique adstrito ao mundo de Brasília, onde o fim de mês sempre termina no dia 30 e com um cheque na mão para cada um dos 60 milhões de recebedores de proventos, benefícios ou auxílios regulares do governo".

Ao final do encontro, participantes fizeram eco à resistência de Eduardo Cunha ao projeto de repatriação. Duvidavam da arrecadação pretendida. Afinal, disse Rabello de Castro, vai ser difícil convencer quem tem um apartamento em Miami que deve vendê-lo para pagar imposto no Brasil.

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