segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Marcos Nobre - Balas, gatilhos e impeachment

• O PIB chamou o sistema político à ordem

- Valor Econômico

Formou-se um amplo e surpreendente consenso na elite econômica de que a saída de Dilma Rousseff representa mais incerteza e risco do que sua permanência. Colaborou muito para isso a adesão de Aécio Neves aos movimentos pelo afastamento da presidente e uma rejeição universal ao deputado Eduardo Cunha. Para não falar nos temores de que Michel Temer esteja já sob investigação. Ficou claro para a ponta de cima do PIB que deixar a crise nas mãos de uma disputa de rua ou diretamente nas garras da Lava-Jato levaria a situação a um grau de imprevisibilidade inaceitável.

Como ainda tinha quem não acreditasse, foi necessário transmitir a mensagem em alto e bom som. Para que não restasse qualquer dúvida de que o pacto tinha sido selado, o presidente do Itaú Unibanco concedeu entrevista publicada ontem pela "Folha de S. Paulo" para deixar muito clara a posição: "Seria um artificialismo querer tirar a presidente neste momento. Criaria uma instabilidade ruim para nossa democracia". Dilma conseguiu esse apoio decisivo pela ausência de alternativas críveis de estabilização. Não é pouco. Significa que aumentaram exponencialmente suas chances de sobreviver a 2015.

Mas é também sinal de fragilidade do novo consenso. É incomum e sintoma de enorme preocupação que um peso pesado do PIB tenha de vir a público para defender a permanência da presidente. É uma atitude que só aparece em situações extremas, é o tipo de exposição a ser evitada a todo custo. Mostra que as conversas de bastidor não foram suficientes para sofrear os atores políticos em suas tentativas de derrubar Dilma, ou mesmo a chapa inteira eleita em 2014. Não há quem seja mais sensível a um acordão do andar de cima do que o sistema político. Mas impressiona no jogo de forças atual que tanto esteja mesmo já de fato fora de controle. Muitos atores políticos já andaram tanto em uma direção que não têm mais como voltar atrás sem colocarem em risco seu patrimônio eleitoral.

Uma tentativa de segurar o processo foi feita por Fernando Henrique Cardoso, logo após a manifestação do dia 16. Ao propor a renúncia da presidente Dilma Rousseff, o ex-presidente não poderia pretender alcançar esse objetivo. O maior adversário simbólico dar um ultimato à presidente é o caminho mais seguro para que ela não o aceite. A única conclusão lógica e plausível, eliminado o impossível de uma renúncia humilhante, é que FHC pretendia bloquear dentro do PSDB qualquer linha de ação que pudesse resultar no afastamento da presidente.

Ao propor o impossível, FHC tirou o gás das manifestações de 16 de agosto dando a impressão de que estava radicalizando. Tentou manter unidos ele mesmo, Aécio Neves, Geraldo Alckmin e José Serra. Tenta manter unido o PSDB até 2018, de preferência a distância prudente do PMDB. Daí também o caráter moral de seu apelo pela renúncia. Da moral à política há um oceano de instituições e campos de força que, para ser transposto, precisa de bem mais energia do que o impulso moral.

O grito de alerta de Roberto Setubal mostra que a tentativa de FHC caiu no vazio e que o sistema político está ainda mais desorganizado do que ambos pensavam. Mesmo atores políticos sempre dispostos a acatar uma ordem unida vinda do lado de cima do PIB deram declarações protocolares de concordância com FHC e voltaram imediatamente a seus planos de derrubada de Dilma Rousseff. A questão desta semana é saber como reagirão à ordem direta do PIB.

Porque a munição contra Dilma continua a ser tirada do arsenal. Um recurso muito comum na luta política é colocar a bala na agulha e não engatilhar a arma. O projétil fica ali à espera do momento certo para mostrar sua serventia. Pode ser efetivamente disparado, pode ser usado como instrumento de chantagem. Ou não. O recurso pode ficar na gaveta durante anos ou décadas. Um segundo turno de votação de uma emenda constitucional, por exemplo, pode ficar em suspenso indefinidamente.

O mesmo raciocínio se aplica à ocupação de postos estratégicos. Manter alguém com afinidade de posições em um órgão do Estado com capacidade de influir em processos de importantes repercussões macropolíticas pode ser decisivo em momentos cruciais. Gilmar Mendes, na qualidade de ministro do Tribunal Superior Eleitoral, solicitou investigações sobre financiamento da campanha à reeleição de Dilma Rousseff mediante recursos ilícitos, oriundos do petrolão. Manteve viva a perspectiva de impugnação da chapa vencedora na eleição de 2014, mesmo que se trate de um recurso extremo. Em 2009, o TSE cassou o mandato do governador do Maranhão, Jackson Lago, e deu posse a Roseana Sarney. Fazer o mesmo em relação à eleição presidencial do ano passado provocaria uma confusão na rua dificilmente comparável. Mas a bala continuou na agulha.

O Tribunal de Contas da União até agora não esclareceu quando pretende enviar à Câmara dos Deputados seu parecer sobre as contas do primeiro mandato de Dilma Rousseff. Mantém sua posição de poder e fica à espera de que alguma ordem unida prevaleça no sistema político que lhe permita encaminhar o enguiço. Disso também depende Eduardo Cunha, que colocou em votação de uma vez as contas de mandatos presidenciais que cobrem mais de vinte anos. Até uma decisão do STF que lhe tirou esse poder de iniciativa, colocou as contas do primeiro mandato de Dilma Rousseff na linha de tiro. Caso a ocasião e a necessidade deem as mãos, pode engatilhar o impeachment.

Há ainda Temer. Ao colocar à disposição seu cargo de coordenador político do governo, põe-se mais do que nunca na posição de alternativa a Dilma. Caso não seja de fato atingido pela Lava-Jato, terá unicamente o papel do jogador em permanente aquecimento para entrar em campo.

Só se saberá se a chamada à ordem de Roberto Setubal foi mais bem sucedida do que a de FHC se balas começarem a ser efetivamente retiradas da agulha. Será uma medida importante do rumo que o sistema político irá tomar a partir de agora. Se os gatilhos continuarem armados, ficará ainda mais difícil vislumbrar outra maneira de impor o novo consenso.
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Marcos Nobre é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap.

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