O Globo – Segundo Caderno
Li em alguma parte que Lula aconselhou Dilma a abraçar o urso. Era no contexto da relação com o PMDB, portanto abraçar o amigo urso. Mas a imagem do urso me trouxe lembranças da adolescência, quando esperava, na banca da Rua Halfeld, a chegada da revista “Senhor”. Um banquete literário e visual, porque a revista era diagramada por um dos gênios das artes gráficas brasileiras: Bea Feitler.
Foi através da revista que travei contato com “O urso”, de William Faulkner. Era um animal formidável, com um ferimento na pata, provocado por uma armadilha. Todos o temiam, mas desejavam encontrá-lo. Lembro-me de que um dos índios que ajudavam os caçadores dizia que até os cachorros se preparavam para um dia encontrar o urso. Sabiam, como os humanos, da importância do acontecimento.
O urso que Dilma precisa encarar é a realidade sombria que seu governo trouxe ao país e sua incapacidade pessoal de achar o caminho. Esse urso não creio que ela abrace. Mas continuará rondando seu acampamento.
No princípio da semana passada, conversava com um grupo de amigos em Niterói sobre a crise política e econômica. Quando saí, o motorista me esperava nervoso: dois homens armados o sequestraram e roubaram tudo que havia no carro. No caminho de volta ao Rio dei aquele soco na testa: tinha falado muito das duas crises e apenas mencionado a que mais me preocupa — a crise social.
O fim de semana tinha sido marcado por arrastões na Zona Sul do Rio e os debates que sempre surgem nesses períodos. Queria lembrar que assim como as coisas mudam dependendo da luz que as banha, esses fatos têm de ser examinados no contexto mais amplo de um país em recessão, com queda no PIB e a perda de R$ 1 trilhão no valor de mercado das empresas nacionais.
Tanto o desemprego como o aumento da violência urbana são indicadores bastante evidentes. No cotidiano da estrada, vejo alguns mais sutis: aumenta o número de andarilhos e, agora, os encontro mesmo em rodovias secundárias.
Embora Dilma não queira abraçar o urso, as pessoas que trabalham estão tendo de encarar a crise, nas ruas ou diante da televisão, com o fluxo das notícias negativas. Muitos de nós enfrentam duras realidades cotidianas, buscando proteger os entes queridos. Mas ainda não decidíamos encarar o urso ombro a ombro e despachar um governo que se impôs pela delinquência. Um governo assim não cai de maduro. Haverá tensão, violência verbal, grandes transtornos.
Mao Tse Tung dizia que a revolução não é um piquenique. No caso do comunismo, foi mais uma sucessão de massacres. A derrubada do governo petista é algo muito mais suave do que uma revolução. Mas também não é um simples clique no computador. Será preciso fazer mais, ou então nos conformamos apenas com os ritmos e os prazos da Operação Lava-Jato.
Desdobrada logicamente, a Lava-Jato vai derrubálos. Um tesoureiro do partido do governo foi condenado a 15 anos de prisão. Recebeu milhões em propina. Será que guardou tudo na sua mochila? Ou destinou a um partido que financiou a campanha de Dilma? É impossível uma investigação séria parar no tesoureiro. Mesmo se o Supremo derrotar a Operação Lava-Jato, como parece ser sua intenção, ele não devolverá credibilidade aos bandidos que governam o país.
A fórmula brasileira é mais sutil que a da Venezuela. Os ministros não se identificam tanto com o governo. São medíocres o bastante para saber que, sem o PT, jamais estariam sentados ali. Mas por quanto tempo essa obviedade dos crimes do petismo deixará de ser o ponto central dos cálculos políticos no Brasil? Não há futuro com o PT.
O tempo em que permanece no poder é um tempo de “no future”, como diziam os punks em Berlim. A palavra punk ganhou uma nova dimensão na nossa linguagem cotidiana; é algo bizarro e desagradável. E, no momento, a cena nacional é punk.
Na praia de Niterói, antes tão pacata, percebi os limites de apenas falar da cúpula, quando a crise, a 20 metros da minha cadeira, surpreendia com um revólver na cabeça. É preciso fazer mais. Mas é arriscado empregar mal a energia. Neste momento, as tarefas são garantir a sobrevivência cotidiana e combater um sistema criminoso.
Os políticos profissionais que podem fundir essas duas tarefas têm sido muito ausentes. Verdade é que já apresentaram o pedido de impeachment. Mas ainda não discutem que país será o Brasil, após a queda do lulopetismo.
A rejeição maciça a um governo talvez seja suficiente para derrubá-lo. Mas, se surgirem algumas ideias claras sobre o futuro, o processo fica mais rápido.
Vivi muitas crises no Brasil, em quase todas com a certeza, às vezes ilusória, de que as influenciava com minha ação. Esta é mais tentacular, pantanosa. Estou vendo a morte de um projeto que há pouco mais de uma década parecia o novo. Os prazos se encurtaram dramaticamente. Ou nós nos atrasamos muito. De qualquer forma, é preciso correr. Se ficar, o bicho pega.
Nenhum comentário:
Postar um comentário