- Folha de S. Paulo
• Depois de guerra civil, a inflação é a forma menos civilizada que há de gestão do conflito distributivo
A dívida pública cresce em bola de neve. A incapacidade da presidente em encaminhar o desequilíbrio das contas públicas deixa uma nuvem de incerteza sobre os agentes econômicos. É impossível planejar e investir em uma sociedade em que o Tesouro Nacional não consegue estabilizar a trajetória da dívida pública.
A instabilidade fiscal é um sinal de que nossa sociedade não é capaz de chegar a um acordo para ter gasto público compatível com o que ela mesma decide entregar ao Estado na forma de receita.
Dito de outra forma, não estamos conseguindo enfrentar nosso conflito distributivo de forma civilizada. Esse é o sentido mais profundo da perda do grau de investimento. O selo de bom pagador é dado àquelas sociedades que, a partir de alguns consensos, administram seu conflito distributivo civilizadamente.
Nós estamos às portas de um processo disfuncional de financiamento público, que os mais velhos conhecem bem, o imposto inflacionário. Depois de guerra civil, a inflação é a forma menos civilizada que há de gestão do conflito distributivo.
É importante lembrarmos que, nas sociedades modernas, o conflito distributivo ocorre –mais do que no chão de fábrica, na forma de conflito direto capital-trabalho– no interior do orçamento público.
Tudo sugere que o Banco Central não subirá mais os juros. A inflação prevista para 2016 e 2017, que até algumas semanas atrás caminhava respectivamente para 5% e 4,5% (portanto, na meta em 2017), voltou a se descolar. As melhores contas que conseguimos fazer sugerem inflação em 2016 na casa de 6,5%.
O que ocorre? O mercado se convenceu de que a presidente não conseguirá criar condições para que a trajetória de crescimento da dívida se estabilize. Levy é extremamente respeitado, mas não é Deus.
A contínua piora da dívida pública eleva o risco-país, o que rebate no câmbio, que, por sua vez, aumenta a expectativa de inflação, apesar da forte recessão econômica e do aumento do desemprego.
Nessas circunstâncias, é possível que o BC avalie que subir mais os juros apenas aumenta o custo da dívida sem sinalizar queda de inflação. Ou pior ainda, que o aumento do endividamento, que segue novas rodadas de subida dos juros (que se aplicam sobre a dívida pública), agravará mais a inflação pelo canal do risco-país e, portanto, do câmbio. Nesse caso, estamos na chamada dominância fiscal: a incapacidade de resolver o problema fiscal atinge tal ponto que tira do BC a capacidade de pôr a inflação na meta. O conflito distributivo que ocorre no interior do Orçamento soluciona-se incivilizadamente: imposto inflacionário.
A presidente impediu, no passado, o ajuste que a teria evitado. Segundo a então ministra-chefe da Casa Civil, o plano de ajuste fiscal de longo prazo proposto em 2005 era "rudimentar". A ideia foi abortada.
Houve excepcional crescimento da receita entre 1999 e 2010, de 6,9% ao ano deflacionado pelo IPCA, comparado ao crescimento real médio do PIB de 3,4% no mesmo período. Isto permitiu que o dia da verdade fosse jogado para frente.
Mas ele começou a chegar em 2011: deste ano até 2014, o crescimento real da receita recorrente foi de 2,1%, ante PIB que também cresceu 2,1%. Era a segunda chance que Dilma tinha, agora como presidente, de contribuir para o ajuste fiscal civilizado. Resolveu varrer para baixo do tapete nosso desequilíbrio fiscal.
Ele reapareceu quatro anos depois, num momento em que nossa presidente se tornou politicamente um zumbi. Parece que vamos para a inflação.
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Samuel Pessôa, formado em física e doutor em economia pela USP, é pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da FGV.
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