A Argentina terá um segundo turno para a escolha do presidente pela primeira vez em sua história. O candidato oficial, Daniel Scioli, começou o domingo com esperanças de liquidar a fatura no mesmo dia e terminou-o cabisbaixo, mais com semblante de derrotado do que de vencedor, após a surpreendente reviravolta do eleitorado às vésperas de irem às urnas. Daniel Scioli, da Frente para a Vitória peronista, obteve 36,86% dos votos, menos do que amealhara nas primárias alguns meses antes. Seu maior rival, Mauricio Macri, do Mudemos, de quem precisava distanciar-se 10 pontos percentuais para vencer, conseguiu reunir 34,33% dos votos, um avanço de quase cinco pontos percentuais das primárias e do que lhe atribuiam todas pesquisas. Sergio Massa, peronista dissidente e líder da União por uma Nova Argentina, ficou com 21,34% e tornou-se fiel da balança em uma disputa agora imprevisível.
O eleitorado argentino mostrou o desejo de mudanças. Boa parte dos 25,2 milhões que foram votar repudiaram as ações de Cristina Kirchner, que impôs candidatos e restrições a Scioli, a ponto de durante toda a campanha pairar sobre o candidato oficial dúvidas de se ele seria mero ventríloquo da Cristina ou se tinha independência suficiente para se livrar dessa tutela para alçar voo próprio.
Scioli, foi muito ambíguo a respeito, além de carregar o kirchnerista fiel Carlos Zannini como vice, e isso lhe custou caro. A interferência de Cristina na campanha teve peso nos resultados desfavoráveis do pleito. Aníbal Fernández, braço direito dos Kirchner, político de estilo mafioso e agressivo, foi alçado a candidato ao governo da Província de Buenos Aires - a sucessor de Scioli no posto - e conseguiu um feito - pela primeira vez em 28 anos os peronistas não chefiarão a administração de um pedaço do país que concentra 37% do eleitorado. A candidata de Macri, María Eugenia Vidal, venceu a eleição com 39,5% dos votos, ante 35,5% do rival. Na capital, Buenos Aires, avessa aos peronistas, Macri obteve 50,5% dos votos, ante 24% de Scioli.
Scioli foi ainda o candidato peronista menos votado nas eleições presidenciais, com desempenho inferior a Italo Luder (40,1%), derrotado por Raúl Alfonsín, ou Eduardo Duhalde (38,27%), que perdeu em 1999 para Fernando De La Rúa. A Frente para a Vitória perdeu a maioria na Câmara dos Deputados, com 26 cadeiras a menos. Somada a aliados, ela tem agora 117 de 257 deputados, enquanto que a coalizão de Macri tem 91 e peronistas não kirchneristas, 20. No Senado, porém, a FPV manteve confortável maioria de 42 das 72 cadeiras.
A batalha principal para o liberal Mauricio Macri será buscar trazer para seu lado os eleitores de Sergio Massa, peronistas descontentes que despejaram 5,211 milhões de votos no opositor. Em segundo plano, mas importante, será tentar obter o apoio que for possível entre os eleitores da Frente de Esquerda e da Frente Ampla Progressista, que atraíram 1,4 milhão de votos (6,7% do total).
Apesar da surpresa eleitoral, que o coloca em escala ascensional, Macri enfrentará um duro segundo turno. Ele prosseguirá o ajuste de estratégia iniciado nos últimos dias, ampliando os acenos aos peronistas e a Massa. Um governo com toques de união nacional, que contasse com peronistas, suavizaria sua imagem de liberal mais sensível aos cantos dos mercados do que às necessidades sociais, que lhe é atribuída há anos pelos peronistas. Macri já insinuou encampar temas de campanha caros a Massa, como maior rigor no combate às drogas e à criminalidade. Do lado dos governistas, aposta-se que a base de Massa é peronista e tem pouca afinidade com o liberalismo de Macri.
Daniel Scioli, por seu lado, precisa definir se projeta sua independência ou se aceita o abraço fatal de Cristina. Ele já havia dado alguns passos de discreto afastamento, ao apresentar sua eventual equipe de governo sem pessoas ligadas à entourage da presidente.
Define o segundo turno o grau de mudança que os argentinos estão dispostos a tolerar. Scioli diz que a mudança que defende será "gradual", "sem ajuste fiscal, maxidesvalorização e retração da economia" (The Economist), com proteção da indústria, dos benefícios sociais e um Estado forte. Parece mais uma troca de estilo que de substância, o que lhe tirou votos no domingo. Macri quer abrir a economia, colocar o câmbio no lugar certo e retirar o Estado de onde ele não deveria se meter. Isso será decidido em 22 de novembro.
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