- O Estado de S. Paulo
“É muito mais difícil escutar a música polifônica do que melodia acompanhada.” Assim escreveu Mário de Andrade, em 1936, num breve texto de apresentação de um concerto no Theatro Municipal. Naquele dia, 2 de março de 1936, o Municipal levou um Trio (violino, violoncelo e piano), de Beethoven, um Quarteto (dois violinos, uma viola e um violoncelo), de Borodine, e outras peças. E o poeta, completamente arrebatado por suas funções de formulador de políticas culturais, falava de cada uma delas para educar os ouvidos do povo paulista. Em linguagem simples e envolvente, explicava as características dos gêneros musicais, o modo como a estrutura clássica pode abrigar a voz de cada compositor e, mais ainda, as formas nacionais que esse compositor consiga garimpar na música popular.
O texto (que não foi assinado em sua publicação original) é mais uma pequena joia de Mário de Andrade – que acaba de ser republicada. Está nas páginas 126 e 127 do livro me esqueci completamente de mim, sou um departamento de cultura (tudo em minúscula, assim mesmo, como era do gosto dele), organizado por Carlos Augusto Calil e Flávio Rodrigo Penteado, lançado este mês pela Imesp. A preocupação didática – ou a obstinação cívica por “formar” e elevar o gosto do público – dá a tônica da prosa do escritor transfigurado em “departamento de cultura”. Mário dá uma aula.
Salienta que nos madrigais e nos corais que seriam apresentados, obras que ele chama de polifônicas, “há várias melodias cantadas ao mesmo tempo e combinadas entre si”, o que deveria ser ouvido como um desafio. O público brasileiro, ele afirma, teria mais familiaridade com as “canções a uma vos só”, ou a “melodia acompanhada”. Para esse público, as obras polifônicas não eram fáceis.
De repente, o pensamento de Mário de Andrade promove um salto magnífico. Quase nas linhas finais, fere o nervo da mentalidade brasileira e dispara uma frase que, sem pecar pelo vício da generalização, consegue ser totalizante. Depois de constatar que “é mais difícil”, para o público paulistano de seu tempo, “escutar música polifônica”, ele dá sua explicação – de fundo bem modernista, aliás – para essa “dificuldade”. Eis o que diz: “O nosso povo tem o defeito grave de ser muito individualista e por isso em vez de se apaixonar e lutar pelos grandes ideais de todos juntos, cada qual cuida de si e vive se lastimando dos seus sacrifícios pessoais. Isso é egoísmo e falta de compreensão da humanidade”.
O autor já consagrado de Macunaíma – obra-prima que havia sido lançada oito anos antes, em 1928 – pressente dentro dos ouvidos da gente brasileira a presença de seu “herói sem nenhum caráter”. É assim que, por meio de partituras, revela as linhas tortuosas da civilização nacional – se é que isso existe ou existiu. Para ele, o público estaria por demais aprisionado pelas narrativas egocêntricas, pelo exibicionismo de heróis solitários e salvadores (inclusive os sem caráter) e, por isso, não teria os requisitos para apreciar melodias distintas que se desenrolam simultaneamente numa mesma peça, sem que uma tenha de emudecer a outra para se fazer ouvir.
Numa extrema concessão ao didatismo, o poeta que virou departamento de cultura apela para o futebol. Sugere que quem olha para um jogo e nele enxerga apenas a atuação do artilheiro vê dentro do campo um espetáculo que lembra a melodia acompanhada. De outro lado, quem for capaz de desfrutar a beleza do movimento coletivo dos atletas, movendo-se como equipe, terá condições de vislumbrar uma polifonia no gramado.
Deixando de lado a exótica modalidade desportiva a que chamam futebol – que não era o forte de Mário de Andrade, para nossa sorte –, a comparação entre a falta de formação para ouvir música e a “falta de compreensão da humanidade” não perdeu um fiapo que seja de sua atualidade. Não apenas ainda é procedente, como ganhou uma certa carga de urgência, de dramaticidade. À luz (ou à sombra) do espetáculo político a que estamos submetidos, o velho texto do poeta modernista alcança sentidos menos folclóricos e mais reais. O “egoísmo” de que nos fala Mário de Andrade parece ter-se agigantado, acometendo hoje não apenas os ouvintes incultos, que somos todos nós, mas também, e principalmente, os maestros, que são aqueles que nos governam ou deveriam credenciar-se para nos governar.
Tanto os que se encontram instavelmente instalados nas dependências dos cargos executivos como aqueles que supostamente fazem oposição estão acometidos do “defeito grave de ser muito individualistas e por isso em vez de se apaixonar e lutar pelos grandes ideais de todos juntos”. Olhando para eles, logo vemos que “cada qual cuida de si e vive se lastimando dos seus sacrifícios pessoais”. A conclusão não demora a falar por si: “Isso é egoísmo e falta de compreensão da humanidade”.
Se você puxar um pouco pelo acúmulo de cultura política de que dispõe (certamente dispõe, ou não estaria aqui, agora, a lutar pacientemente com estas mal traçadas), vai se dar conta de que a utopia democrática é mais ou menos análoga à descrição que Mário de Andrade faz do desafio da polifonia musical. Sob as mesmas claves de fá e de sol, itinerários melódicos distintos podem coexistir sem ter de desejar se exterminar reciprocamente. Não há democracia sem vozes dissonantes, ou sem percursos atonais, isso é certo, mas também não há democracia sem um mínimo de pentagramas comuns.
É por aí que vemos que a coisa por aqui anda difícil: os maestros estão pondo fogo nos pentagramas. O governo diz que toda a oposição é golpista. A oposição diz que todo mundo no governo é estelionatário, usurpador e, não nos esqueçamos, ladrão. São agentes do ensurdecimento nacional.
Mário de Andrade queria educar o povo que não sabia ouvir. Hoje temos de educar os líderes que não sabem tecer a polifonia democrática.
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Eugênio Bucci é jornalista, é professor da ECA-USP
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