Seria exagerado dizer que a crise vivida pelo país neste momento é a mais grave de sua história.
Para lembrar apenas dois exemplos, a que teve seu desfecho no suicídio de Getúlio Vargas, em 1954, e a que resultou em duas décadas de ditadura militar, em 1964, conheceram desdobramentos que, hoje, nem os mais pessimistas haveriam de prever.
Em nenhum instante, contudo, foram tão grandes a impressão de complexidade, a carga de paradoxos, a variedade de alternativas e atitudes que a situação vem trazer aos olhos dos brasileiros.
Neste domingo (17), a Câmara dos Deputados vota o impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT). Já representa uma simplificação, entretanto, apresentar assim a decisão a ser tomada. Embora na prática seja disso que se trata, do ponto de vista jurídico e institucional a descrição é inexata.
Trata-se de votar a autorização para a abertura de um processo por crime de responsabilidade da presidente, a ser ainda examinado, em caso de vitória da oposição, pelo Senado Federal -num prazo que deveria ser abreviado tanto quanto possível.
Ainda que de ordem processual, o esclarecimento serve para indicar o grau de minúcia das discussões em curso -e que contrastam com a simples e precisa percepção da ampla maioria dos brasileiros: o governo Dilma Rousseff acabou.
Está exaurido pela própria incompetência política, pelo incomparável desastre econômico que criou, pelo desvelamento de todo o sistema de corrupção que o PT instaurou no centro do poder. O país definha, e a presidente e seu partido são responsáveis por isso.
O PIB recua, a inflação corrói salários, o desemprego aumenta, o crédito diminui; nenhum desses efeitos ocorreu sem que o dedo de Dilma estivesse entre as causas. Seu apetite intervencionista e sua inépcia gerencial arruinaram estatais como Petrobras e Eletrobras e afugentaram investidores.
Se a certa altura da caminhada Dilma insinuou uma tímida correção de rumos, já era tarde. A oposição fez tudo para barrar suas esporádicas tentativas de reconduzir a economia na direção da boa administração das contas públicas.
Entre os mais ferozes adversários da presidente contam-se figuras políticas notórias pelo envolvimento em diversos escândalos de corrupção, para não mencionar apenas a Operação Lava Jato. Tem-se o mais escarrado exemplo no presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ).
Sobrevivendo no cargo por obra de expedientes que desafiam a credulidade, a paciência e a decência da sociedade, esse réu da Lava Jato surge, até segunda ordem, como um dos vencedores prováveis da batalha do impeachment.
Enquanto isso, o vice-presidente Michel Temer (PMDB), com sua própria eleição contestada no Tribunal Superior Eleitoral e dirigindo uma agremiação habituada às mais rasteiras práticas políticas, prepara-se para assumir o poder.
O quadro lembraria, para utilizar as palavras do poeta inglês Percy Bysshe Shelley (1792-1822), o da "hipocrisia cavalgando um crocodilo", não fossem igualmente grotescos, mentirosos e reptilianos os protestos de inocência que Lula e seus coadjutores reclamam para si.
Sem dúvida uma vitória do impeachment neste domingo significará, para a expressiva maioria dos brasileiros, a justa punição de um governo que, na incompetência, na arrogância e no delírio de seu próprio isolamento, destruiu a economia, afundou-se na corrupção e escarneceu das instituições.
Se o afastamento da presidente vier a ser confirmado, todavia, ele não representará de imediato a resolução da crise política, econômica e moral em que o país se acha.
Fundado em premissas jurídicas em alguma dose contestáveis, o processo de impeachment é uma medida traumática, projetando para o futuro divisões e inconformismos que em nada contribuem para a travessia, a tudo crer longa, do grave momento econômico.
Em vez desse recurso extremo, melhor seria a realização de eleições presidenciais ainda neste ano. Nos termos da Constituição, ela seria convocada em caso de renúncia da presidente e de seu vice -atitude dupla que esta Folha defende.
São muitos os desafios que se oferecem ao país, seja qual for o resultado da votação na Câmara, e o governo precisará de renovadas doses de legitimidade para vencê-los. Salvar a economia é a prioridade, mas não será fácil.
Alimentam-se, de um lado, resistências a medidas inadiáveis de restrição nos gastos públicos. De outro, promoveram-se ilusões demagógicas de que a sociedade não iria "pagar o pato", sendo clara, no entanto, a necessidade de aumentar impostos a fim de restaurar finanças públicas que se aproximam do colapso.
A corrupção, por sua vez, não será vencida num lance parlamentar. Cresce, além disso, o temor de que um governo peemedebista venha a tentar desarmar a máquina investigativa da Polícia Federal e do Ministério Público Federal, capaz de atingir muitos dos que hoje se pavoneiam na oposição.
Nenhum desses desafios será superado a curto prazo, e de nada ajudarão um clima de exaltação partidária ou eventuais tentativas de abafar a Lava Jato -algo que os brasileiros jamais admitirão.
A crise tem de ser encarada com equilíbrio, com espírito crítico e esperança construtiva -atitudes que esta Folha, ao longo de todo o processo, tem-se esforçado e se esforçará por manter.
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