domingo, 17 de abril de 2016

Rex inutilis - Celso Lafer

- O Estado de S. Paulo

O impeachment está na ordem do dia. Tem como dados básicos, de um lado, o direito de um presidente de governar em função dos resultados das eleições e, de outro, o seu dever de governar exercendo o poder de acordo com o que estabelecem as normas jurídicas do País, e não em função do seu discricionário voluntarismo.

Sempre existe o risco proveniente do abuso de poder no exercício da Presidência. É para lidar com esse risco que as Constituições democráticas de países presidencialistas, como a do Brasil, preveem o impeachment, que se configura quando se apuram crimes de responsabilidade (artigo 85 da Carta de 88). “A ideia de responsabilidade é inseparável do conceito de democracia”, na lição de Paulo Brossard no seu clássico livro sobre a matéria. Nesse contexto observa que “o impeachment constitui eficaz instrumento de apuração de responsabilidade e, por conseguinte, do aprimoramento da democracia”.

O impeachment foi introduzido nas nossas Constituições com a República. Tem como matriz conceitual o constitucionalismo americano. Mas vale a pena lembrar que a Constituição do Império, ressalvando a Coroa, contemplava a responsabilidade dos ministros como órgãos necessários do exercício do Poder Executivo. Entre as hipóteses contempladas para a apuração da responsabilidade ministerial, previstas no seu artigo 132 e que tem sua pertinência para a reflexão sobre a atual conjuntura, aponto: a falta de observância da lei; a dissipação dos bens públicos; peita, suborno ou concussão. Destaco que por força do artigo 133 “não salva aos ministros da responsabilidade a ordem do imperador, vocal ou por escrito”.

A origem teórica que depois permitiu nas modernas Constituições presidencialistas elaborar o nexo impeachment-responsabilidade está ligada a distinção elaborada por Jean Bodin no clássico Seis Livros da República, de 1583. Bodin diferencia a titularidade da soberania do seu exercício e identifica as formas degeneradas de governo como as provenientes do mau exercício da soberania. Indica que não apenas um tirano, mas também um governante incompetente pode ser um grande desastre para uma comunidade política. Aponta dessa maneira para a figura jurídica do rex inutilis – o rei inútil – e dos processos de sua deposição, elaboração conceitual da Idade Média para lidar com a incapacidade de governar de um rei.

São características do rex inutilis na elaboração doutrinária do Direito medieval na Europa: a falta de apropriado discernimento político, a inépcia administrativa, a negligência moral, o acúmulo de erros políticos. É o que aponta Edward Peters, o grande estudioso da matéria, no seu livro de 1970 The Shadow King: Rex Inutilis in Medieval Law and Literature, 751-1327. O exame da figura do rex inutilis e das vicissitudes da sua deposição, esclarece Peters, é o do governante legítimo que desfrutava a dignidade do poder do reino até o momento em que, configurada a sua inadequação, é declarado inapto para governar. Trata-se em síntese do recorrente e sempre atual tema do fracasso político que aponta para a responsabilidade do governante até mesmo nos tempos dos reis.

Um exemplo muito bem discutido por Peters é o de dom Sancho II de Portugal, destituído da governança do reino em 24/7/1245 pelo papa Inocêncio IV, num processo decisório que acolheu as demandas dos vários segmentos do reino. No âmbito do enquadramento medieval da relação entre o papado e os reis tendo em vista o bem comum da cristandade, Inocêncio IV nomeou o irmão de Sancho II, dom Afonso, para substituí-lo como curador e guardião do reino. Os destinatários da fundamentada normativa de Inocêncio IV foram todos os setores da sociedade portuguesa.

Os leitores e admiradores de Camões, entre os quais me incluo, encontram uma sintética indicação sobre esta matéria n’Os Lusíadas. Refere-se Camões no Canto III a Sancho II como “manso e descuidado;/ que tanto em seus descuidos se desmede/ que de outrem quem mandava era mandado”. E por conta de seus conselheiros, os seus “privados”, do reino foi “privado”, posto que “como por eles se regia em todos os seus vícios consentia” (III-91). Indica Camões a causa da destituição da seguinte maneira: “Mas o reino, de altivo e costumado/ a senhores em tudo soberanos/ a rei não obedece, nem consente/ que não for mais que todos excelente” (III-93). Por esta causa em substituição a dom Sancho II, o reino governou seu irmão Afonso, que “o Bravo se chamou” (III-94).

João Francisco Barreto, destacado polígrafo português do século 17, qualificado e pioneiro estudioso de Camões, na sua Micrologia Camoniana esclarece o histórico dos versos do poeta acima citados, apontando que dom Sancho II era “muito descuidado no governo do reino, de muito fraco espírito nas coisas da justiça e assim foi privado do reino”.

Martim de Albuquerque, no livro de 1988 A Expressão do Poder em Luis de Camões, também lastreado em Peters, identifica na visão camoniana de Sancho II um exemplo histórico de rex inutilis, em consonância com as normativas de Inocêncio IV sobre uma deposição causada por inadequação e incapacidade. Complementa suas considerações lembrando a distinção entre a pessoa e o ofício de governar, o que permite a afirmação de que o rei não existe para si mesmo, mas para seu reino. Dom Sancho II, pela sua inadequação e incapacidade, não servia ao reino, por isso foi substituído por seu irmão.

Escrevo este artigo antes de saber se a Câmara decidiu encaminhar ou não para o Senado o processo de impeachment da presidente Dilma, que tem como lastro o bem fundamentado parecer aprovado no início da semana passada na comissão incumbida de examinar a matéria. Se o impeachment não prosperar e a presidente conservar seu mandato, avalio que, à luz da inadequação de sua desastrada Presidência e dos que a cercam na governança do País, ela estará presente no rol da figura jurídico-política do rex inutilis.

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Celso Lafer é professor emérito da USP foi ministro das Relações Exteriores no governo Fernando Henrique Cardoso

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