- O Globo
Não é uma mera questão contábil, mas um atentado à lei fiscal. A derrota da presidente Dilma Rousseff na Comissão do Impeachment fez o dólar ontem voltar ao ponto em que estava antes da perda do grau de investimento. O que se comemora, no mercado, é que o processo começa a caminhar para um desfecho. Mas há ainda um longo caminho antes da decisão, e o Brasil continuará vivendo a sua era da incerteza.
O Brasil vive um tempo insano em que a qualquer momento aparece um fato novo que empalidece o evento imediatamente anterior. Ontem, quando o país estava de olho na sessão da Comissão do Impeachment, saiu o espantoso áudio do vicepresidente já falando como favas contadas o que ainda é um processo incerto. Michel Temer era apontado como um profissional da política, mas o que ele fez foi de um amadorismo impressionante: sentou-se na cadeira que não lhe pertence, na fase preliminar de um processo que pode ter qualquer desfecho.
O debate na Comissão do Impeachment, enquanto foi racional, deixou clara a resistência do governo em admitir a gravidade do que aconteceu na economia. O país levará anos para se reequilibrar, a dívida pública seguirá uma perigosa trajetória, empregos estão sendo queimados, mas nada disso parece importar a um governo que despreza o ordenamento fiscal do país.
Na sua defesa, o ministro José Eduardo Cardozo chegou a protestar:
— Num país marcado pela corrupção, a presidente vai ser afastada por uma questão contábil?
Na verdade tudo é mais complexo. O que o governo fez até agora foi lutar para que as denúncias de corrupção não sejam consideradas, e por isso as delações da Lava-Jato ficaram de lado. Ainda que os fatos revelados não tenham a ver com qualquer favorecimento pessoal da presidente Dilma, há indícios de dinheiro de superfaturamento de contratos com estatais sustentando a campanha eleitoral. Os governistas disseram que nada há contra a presidente Dilma. A verdade é que existe muitas evidências contra o governo dela, mas nada pode ser analisado no atual processo de impeachment.
O que está sendo verificada é a questão fiscal. A estratégia foi delimitar o terreno a este assunto, e só ao que aconteceu em 2015. Neste ponto se vê uma aliança muito curiosa, porque para o governo é fundamental que prevaleça a decisão de Eduardo Cunha de não admitir que se avalie no processo o que aconteceu no primeiro mandato. Do ponto de vista econômico, em 2014 é que foi feito o grande atentado à Lei de Responsabilidade Fiscal.
O ministro Cardozo disse que os decretos de aumentos de gastos sem autorização do Congresso ocorreram porque houve queda de arrecadação. A verdade é mais completa: houve queda de arrecadação, mas houve também orçamento com premissas falsas e as pedaladas que acabaram de arruinar as contas de 2015.
Em agosto de 2014, a equipe do então ministro Guido Mantega mandou o Orçamento ao Congresso com uma previsão de crescimento do PIB de 3% em 2015. Ou seja, superestimou a receita. Quando se projeta um crescimento maior do que ele será, o governo passa a contar com uma receita que depois não arrecada. A Receita Federal explicou no seu relatório que o principal fator que reduziu a arrecadação foi o custo das desonerações. Elas somaram R$ 103 bilhões.
O ano de 2015 começou com um Orçamento que previa R$ 114 bi de superavit e terminou com um déficit de R$ 120 bilhões. Essa diferença de mais de R$ 230 bilhões é grande demais para ser considerada como resultado apenas de um revés econômico inesperado. O que pesou foram as pedaladas de 2014 pagas no último dia de 2015. A dívida de um ano foi paga no outro. Isso torna um ano ligado ao outro inexoravelmente. A pedalada é o elo perdido entre os dois mandatos.
As questões econômicas são áridas e pouca gente tem na memória a sequência dos eventos. Mas o que trouxe a presidente a este momento foi a demolição sistemática dos princípios fiscais, a conspiração contra a ordem monetária, o golpe nas estatísticas públicas. Hoje a inflação começa a cair, mas batida pela recessão mais profunda e prolongada que o Brasil já viu.
Muitos interesses moveram os 38 votos dados ontem pela admissão do processo de impeachment. Eles foram 58% dos votantes e se isso for reproduzido no plenário não é o suficiente para o processo ser encaminhado ao Senado. A incerteza permanecerá no país.
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