segunda-feira, 20 de junho de 2016

A soma de todas as espertezas - Marcos Nobre

• Temer e Renan são adversários em uma luta combinada

- Valor Econômico

O governo interino é meramente reativo, não se pauta por uma agenda própria. Pauta-se cotidianamente pela grande mídia, preocupado com o que vão dizer editoriais, reportagens, análises. No resto do tempo de que dispõe, pauta-se pelas tentativas de neutralizar o que avalia como sendo os focos de insatisfação mais perigosos, que podem se transformar em greves e protestos difíceis de enfrentar. O tempo todo é um governo a reboque dos movimentos da Lava-Jato.

Pode-se dizer que a regra tem a exceção óbvia do programa econômico. A questão aqui é saber o quanto o programa é para valer e o quanto serve apenas para tentar manter as aparências ideológicas de um governo empenhado em implantar a austeridade fiscal e reformas liberalizantes. Isso poderá ser medido em definitivo somente depois de inventariados os puxadinhos e beirais com que sairá do Congresso o teto para a despesa primária (não financeira) da União, configurado em Proposta de Emenda à Constituição (PEC) entregue pessoalmente pelo presidente interino ao presidente do Congresso na semana passada. Ainda assim, há já indícios robustos de que a deglutição do teto pelo sistema político não produzirá nem de longe a revolução liberalizante desenhada no papel. Cada componente da equação disfuncional da política atual pensa que sua esperteza é mais esperta que a dos demais. Só que, nesse caso, a soma das espertezas aponta para déficit.


O primeiro a estimular e a aceitar abrir puxadinhos e beirais no teto foi o próprio Michel Temer. Foi sua a tática esperta de colocar neojabutis na árvore da PEC. Trata-se de uma inovação tecnológica porque não são mais jabutis contrabandeados nas árvores das medidas provisórias, mas aprovados antes da aprovação do teto. Tornam-se parte da paisagem fiscal, inamovíveis, necessariamente protegidos pelo teto, seja lá o tamanho e o formato que ele venha a ter.

Foi assim com o reajuste para o funcionalismo, a capitalização das estatais, a ajuda para o Rio de Janeiro em falência olímpica. E sabe-se lá o que mais ainda. A reunião de hoje com os governadores para encontrar saídas para a crise das dívidas estaduais é apenas uma prévia de uma correria generalizada pela aprovação de novos puxadinhos e beirais antes da instalação do teto suspenso no ar de Meirelles.

A esperteza da tática do teto é outra. Embute no texto enxuto da PEC o anexo implícito de todo o catálogo de reformas: previdenciária, trabalhista, benefícios sociais e assim por diante. Instala o teto e só depois constrói a casa. Aprova-se primeiro a trava constitucional e depois se põe o Congresso diante do inevitável: ou faz as reformas ou inviabiliza a execução do orçamento que aprovou.

Só não custa lembrar que não falta esperteza do lado do Congresso também. A PEC encaminhada estabelece um teto curto, que deixa muita gente na chuva e no frio. Com duração prevista de 20 anos (com possível revisão por meio de projeto de lei no décimo ano de vigência), limitado à correção pela inflação do ano anterior, sem concessões a qualquer conjuntura favorável de crescimento, a PEC é séria candidata a um longo banho-maria congressual. O sinal de alerta foi dado por Renan Calheiros, que resolveu apontar uma incompatibilidade antes não detectada entre a "transitoriedade do governo" e o encaminhamento de "medidas substanciais".

A esperteza do presidente do Senado e do Congresso não difere daquela de Michel Temer. Renan Calheiros, na conhecida tradição do PMDB, exige medidas de austeridade e, ao mesmo tempo, estimula a aprovação de projetos que aumentam gastos (o Super Simples, o reajuste para o funcionalismo). Michel Temer e Renan Calheiros são adversários em uma luta de resultado combinado. É Henrique Meirelles quem se arrisca a ficar pendurado no teto. Junto com quem resolveu pegar a onda das expectativas liberalizantes infladas de um governo que busca nesgas de apoio para sobreviver. O roteiro é o mesmo que levou ao impeachment de Dilma Rousseff. Só que agora com a certeza de que impeachment não é solução para uma crise que é estrutural.

A prevalecer a correlação de forças atual, quando o Congresso se decidir a votar o teto, vai inverter a lógica do plano Meirelles: vai projetar primeiro a casa e só depois o seu teto. Vai fazer o ajuste possível pensando na casa, de maneira a que o teto não fique nem suspenso no ar nem seja insuficiente para cobrir os cômodos todos, mesmo que menos espaçosos. O modelo já existe, foi o aplicado na Câmara ao projeto do governo da chamada Lei de Responsabilidade das Estatais. Entrou no Congresso no figurino Henrique Meirelles e deve sair no modelito André Moura.

Praticar parlamentarismo (ou o que se entende por isso nas condições atuais) em regime presidencialista dá nisso. As instituições estão em colapso, funcionando de maneira disfuncional há pelo menos um ano e meio, o que impede qualquer saída virtuosa no momento. Só as próximas eleições gerais de 2018 poderão trazer um novo pacto democrático. É decisivo até lá que as forças políticas na sociedade e nas instituições se reorganizem e se reconfigurem de maneira radical.

O máximo a que se pode aspirar no momento é recuperar a tecnologia de empurrar com a barriga típica da década de 1980. Com a vantagem de que está ainda longe o caos típico daquela década. É o que permite usar essa estranha tecnologia para reunir todos os esforços para impedir que o colapso se instale de maneira permanente. Não é à toa que já surgem previsões de déficit para o próximo ano que se aproximam do desastre de 2016.

O programa liberal embutido no teto é a fantasia com que vai desfilar o governo interino nos próximos meses, até assumir sua condição de governo Sarney em condições pós-Plano Real. Sem capacidade de dar rumo de conjunto a seu governo, Michel Temer seguirá ao sabor das correlações de forças cambiantes de um Congresso sob a espada da Lava-Jato. Nessas condições, não há parlamentar que vá arriscar seu mandato e sua proteção de foro na Justiça por um teto que torna sem-teto uma enorme massa do eleitorado.
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Marcos Nobre é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap.

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