O Estado de S. Paulo, 19/6/2016
A Operação Mani Pulite nasceu com a prisão do socialista Mario Chiesa. Depois, muitos parlamentares, administradores e empresários viram o sol nascer quadrado.
Em dois anos, 6 ex-primeiros ministros, 500 representantes e prefeitos caíram nas malhas da Justiça. Figuras exponenciais se demitiram e correram para o exílio. Partidos sumiram ou se modificaram. Novas agremiações preencheram o vácuo político causado pelos juízes e promotores. Alberto Vannucci descreve as batalhas contra gangues oficiais e oficiosas (The Controversial Legacy of ‘Mani Pulite’. A Critical Analysis of Italian Corruption and Anti-Corruption Policies). Segundo ele, a operação não aprimorou a vida italiana. Pelo contrário, os corruptos abriram guerra contra juízes e promotores e os acusaram de atuar politicamente sem votos. A questão moral se reduziu à marca de um pequeno partido, o Italia dei Valori, liderado por Antonio Di Pietro, integrante da força-tarefa. O resultado pífio demonstra, adianta Vannucci, que “a Itália pode ser vista como um modelo de fracasso dos mecanismos institucionais comuns para o controle da corrupção, numa democracia avançada”. Os “laterones” (bom padre Vieira…) financiam processos democráticos e sustentam círculos clientelísticos. As novas leis, mais rígidas, só aumentaram o preço dos pixulecos.
Resultaram, da luta empreendida, a impunidade de políticos como Berlusconi e a leniência em relação a empresários corruptos. Os eleitores da Itália não foram além do apoio emotivo e passageiro aos investigadores e juízes. Em 1996, 91,8% dos votantes percebem a corrupção como um problema, menor apenas que o desemprego. Após 2008, só 0,2% considera a corrupção como gravíssimo obstáculo para o Estado e a sociedade (Italian National Election Studies, dados para as eleições gerais de 1996, 2001, 2008).
No âmbito empresarial, a predominância de famílias donas de empreendimentos possibilita novos elos amigáveis e corruptos com gestores públicos, o que lhes garante vitórias em obras públicas, etc. O número das condenações despenca após a Operação Mãos Limpas: em 1996 foram 1.714; em 2006, 239. Resta a certeza da impunidade. O juiz Gherardo Colombo afirma que “da ótica judicial, a Mani Pulite foi inútil, ou pior, danosa. O fracasso quase completo para assegurar condenações (de 3.200 acusados, 2.200 foram soltos…) fortaleceu a impunidade imperante na Itália” (La Repubblica, 15/5/2000). Outro juiz, Piercamillo Davigo, mostra que os predadores aumentaram, com a pressão da Mãos Limpas, sua força e habilidade criminosa. Ela lhes serviu para aperfeiçoar a bandidagem própria e alheia.
Deixo a companhia de Vannucci. Mas seu escrito é para nós um grave caveat. Recomendo a leitura do texto, cruel e lúcido. A lição serve aos brasileiros, hoje encantados com a Lava Jato, mas imprudentes diante dos políticos que, nos poderes nacionais, têm a capacidade de impor leis favoráveis aos corruptos e contrárias aos promotores e juízes. Bem antes dos analistas que pesquisam fatos recentes, como a Mãos Limpas e a Lava Jato, a Sociologia Política mostrou fraquezas do sistema democrático, em que medram várias corrupções. Não se trata de o rejeitar, mas de perceber as brechas que ele abre para o apodrecimento de governos e a sua troca por outros, autoritários.
Tomemos Max Weber, mais citado do que lido em nosso país. Em Economia e Sociedade e nos tratados sobre a política, ele faz a célebre distinção entre viver para a política ou da política. Os supostos revolucionários sem recursos praticam a “expropriação” de bens privados ou públicos para atingir seus alvos ou, num desvio previsível, para enriquecer pessoalmente. Na outra ponta, plutocratas podem se dar ao luxo de não engordar seus cofres pessoais com recursos do Estado. No plano empírico, no entanto, os dois tipos não se realizam em toda pureza. Revolucionários podem não rapinar e numerosos ricos saqueiam o Estado. As fontes da corrupção não brotam apenas em certos níveis sociais. O exemplo weberiano serve ao caso brasileiro.
Ao analisar a demagogia, doença inevitável na sociedade democrática, Weber indica o acerto do senso comum que julga ter o demagogo vitorioso os mais frágeis escrúpulos “quanto aos meios de captação das massas”. O traço negativo cabe, diz ele, “à democracia aproximadamente da mesma forma em que se aplica à monarquia a fala de certo general a um monarca autocrata: ‘Vossa Majestade logo estará rodeada por meros canalhas’” (Parlamentarização e Democratização). Fulmina Weber: “Democratização e demagogia seguem unidas”. Com o demagogo, cuja técnica no controle das massas é o plebiscito, enfraquecem todos os Parlamentos. O cesarismo considera os milhões de votos concedidos ao condottiere uma legitimação plena, dispensando organismos representativos na confecção das leis.
O Brasil não possui demagogos para arregimentar massas e impor um regime plebiscitário. Mas o nosso Parlamento não busca dirigir o País, só o parasita via Executivo. A farta legislação em causa própria prova que no Brasil os representantes, ricos ou antigos revolucionários, vivem da política de forma obscena. Análise importante é feita por Modesto Carvalhosa na revista MPD Dialógico (ano 13, n.º 47, 2016), sobre a apropriação do bem público. Quanto à canalhocracia, basta seguir, na Câmara dos Deputados, o Conselho de Ética (?!).
Durante o processo contra Eduardo Cunha, os próprios membros acusaram uns aos outros de canalhice, molecagem, palhaçada, imbecilidade e outros mimos. Projetos de lei para amordaçar o Ministério Público e a Justiça prosperam na “casa do povo”. A roubalheira recebe honras de lei. Que tal aprender com a Mani Pulite e vigiar o Congresso, impedir que legisladores ordenem medidas para manter a impunidade? E que tal acabar com a prerrogativa de foro, excrescência defendida pelos que, nos partidos, adiantam falas demagógicas? Tinha razão o general citado por Weber: quem apoia demagogos logo será governado por meros canalhas.
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*Professor da Unicam, é autor de 'Razão de estado e outos estados da razão'
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