• Pesquisador identifica 164 textos do autor carioca assinados com pseudônimos nas revistas ilustradas ‘ Careta’ e ‘ Fon- Fon’, no início do século XX, e reunidos agora em livro, pela primeira vez
Leonardo Cazes - O Globo, 28/7/2016
“J. Caminha”, “Leitor”, “Aquele”, “Amil”, “Eran”, “Jonathan”, “Inácio Costa”. Todos esses pseudônimos assinavam crônicas nas revistas ilustradas “Fon- Fon” e “Careta” nas primeiras décadas do século passado, mas os seus verdadeiros autores permaneciam desconhecidos. Não mais. Todos os textos saíram da mesma pena, a de Afonso Henriques de Lima Barreto ( 1881-1922). O trabalho do jovem pesquisador carioca Felipe Botelho Corrêa, de 33 anos, hoje professor do King’s College em Londres, resultou na descoberta de 164 textos inéditos em livro e que agora estão reunidos na obra “Sátiras e outras subversões” (Penguin-Companhia), que será lançada na próxima segunda, com um debate com a professora da UFRJ Beatriz Resende. Antes, no sábado, Corrêa participa de um bate-papo com o escritor e jornalista Fernando Molica na Cadeg, em Benfica, às 16h. O debate é parte da Flupp Pensa.
A pesquisa, realizada durante seu doutorado na Universidade de Oxford, consistiu numa verdadeira investigação de detetive. Já se sabia que Lima Barreto tinha escrito em revistas ilustradas, e alguns de seus pseudônimos foram apontados pelo seu biógrafo, Francisco de Assis Barbosa, autor de “A vida de Lima Barreto”, lançado em 1952. Outra fonte preciosa foram os manuscritos de Carlos Drummond de Andrade guardados na Fundação Biblioteca Nacional. O poeta mineiro começou a escrever um dicionário de sinônimos da literatura brasileira, mas nunca chegou a concluílo. Nos textos, há referência a alguns dos pseudônimos utilizados pelo escritor carioca. A partir das pistas dadas por Barbosa e Drummond, Corrêa foi atrás das provas que confirmassem as informações — e não só as encontrou, como descobriu outros pseudônimos.
— Essas revistas eram satíricas, então (o pseudônimo) era uma forma de o autor não responder pelo texto, evitar perseguição política. O que não consegui desvendar foi se era o Lima que escolhia o pseudônimo ou o editor. Tem alguns casos que é claramente ele que escolhe porque são referências à sua trajetória — afirma Corrêa.
Já alguns nomes, como “Leitor” e “Aquele”, foram mais difíceis de decifrar. O professor explica como conseguiu identificar a autoria:
— O processo da descoberta é cruzar os textos conhecidos com os textos que não são conhecidos. Quando começa a ver alguma informação que bate, percebe que tem algo ali e sai em busca de outras para confirmar. Digitalizei toda a obra do Lima Barreto para facilitar a busca por palavras.
Projeto literário em revista
Nas suas crônicas, o escritor falou muitas vezes do subúrbio, do bairro de Todos os Santos, onde vivia, e até da sua própria rua. Reclama da qualidade das calçadas, do serviço prestado pelos trens, do abandono em comparação com as áreas nobres da cidade. Tudo incrivelmente atual. Lima Barreto também comenta as notícias de jornal e faz troça dos políticos da Primeira República. Corrêa argumenta que ele escrevia para essas revistas, muito populares na época e que alcançavam tiragens de até 100 mil exemplares, não para ganhar dinheiro apenas. A vontade de se comunicar com um público mais amplo era parte do seu projeto literário.
— Lima tenta traduzir numa linguagem acessível questões intelectuais. A sátira e a caricatura são uma maneira de chegar às pessoas. Ele lia muito os russos, especialmente Tolstoi, que falava que a arte tem um poder de contágio, de comunhão de ideias. Era isso que Lima buscava.
O professor defende que Lima Barreto não era um pré-modernista, como ficou caracterizado pelos escritores e intelectuais que vieram depois dele, mas sim um modernista:
— Lima Barreto era um modernista, e não um pré-modernista como ficou marcado aqui no Brasil, no sentido do que se fazia e se entendia no mundo como projeto modernista. Se eu conseguir mudar isso, fico feliz.
Trechos de crônicas de ‘ Sátiras e outras subversões’
‘ Um bom ministro’
“Logo que o prestante cidadão foi empossado ministro da Agricultura, tratou de acabar com a burocracia.
A diretoria de agricultura não lhe pareceu corresponder ao nome. Não havia nela absolutamente nem um pé de couve. O ministro energicamente mandou retirar as mesas, todo o aparelho burocrático e espalhar terra nos salões das seções e semear couves.
Os empregados foram incumbidos de tratar dos canteiros, regar as mudas, transplantálas e deixar por completo a mania de redigir pareceres e ofícios.
A diretoria de contabilidade foi transformada em horto florestal com baobás e jequitibás, gênero tartarin. Essa ideia foi muito gabada e elogiada pelo aspecto prático que oferecia, pois em breve poderíamos deixar de importar pinho- de- riga.
Calculou- se mesmo que, dentro de cinco anos, com essa floresta tartarinesca do ministro, a economia nacional ganharia cerca de cem milhões de contos.
O telhado do edifício do Ministério foi aproveitado para o plantio de fumo.
O ministro, que era administrador e bom observador, tinha notado que, quase sempre, nos telhados de casas velhas, nascem pés de fumo silvestres. (...)”
‘ Notas avulsas’
“Uma tarde destas, não sei por quê, deu- me na telha tomar um bonde do Catete e ir até o largo do Machado.
Há muitos anos não ia eu por aquelas bandas, embora sejam as do meu nascimento.
Tenho mesmo indiferença por elas, donde se pode inferir que a pátria pode ser muito bem o lugar em que nascemos, mas nem sempre é aquele que amamos.
Embarquei no bonde e fui desfrutando a paisagem urbana. Rua Senador Dantas! Como está mudada!
Não tem mais a beleza ou as belezas de antigamente!
Para onde foram? Voltaram para o cemitério? Quem sabe lá? Passeio Público. A mesma quietude. Lapa. A coluna das sogras lá está impávida a retesar fios e cabos. Tudo pouco mudado. Vamos adiante. Estamos em frente ao Palácio do Catete. Há na porta um vaivém de gentes e automóveis. Que há? É sua excelência, que vai para Petrópolis. Parece que embarcou no automóvel. Ao meu lado, um cidadão, olhando o telhado do palácio, pergunta a um amigo próximo:
— Por que é, Costa, que, quando ele sobe, a bandeira desce? (...)”
‘ Morro Agudo’
“Noticiam os jornais que os moradores de “morro Agudo”, localidade situada à margem da Estrada de Ferro Auxiliar à Central, protestaram contra a mudança de nome da respectiva estação, mudança imposta pela diretoria da Estrada que precedeu à atual.
Vem a pelo lembrar de que forma horrorosa os mesmos engenheiros vão denominando as estações das estradas que constroem.
Podemos ver mesmo nos nossos subúrbios o espírito que preside tal nomenclatura.
É ele em geral da mais baixa adulação ou senão denuncia um tolo esforço para adquirir imortalidade à custa de uma placa de gare. (...)”
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