- Valor Econômico
• Proposta é filha da acachapante derrota do PT nas eleições
Muitos reivindicam a paternidade da vitória folgada no primeiro grande teste parlamentar do governo, mas a PEC dos gastos é filha de fato e de direito da acachapante derrota do PT nas eleições municipais. Se a base governista não entrar em guerra pela Presidência da Câmara dos Deputados, o segundo rebento deste casamento de conveniência dos aliados do presidente Michel Temer será a reforma da Previdência.
O inédito jantar do domingo no Alvorada e a competente preleção dos economistas convidados não teria sido suficiente para convencer os parlamentares a entregar a Temer a vitória da noite da segunda-feira não fosse o efeito das eleições sobre o cálculo dos parlamentares por sobrevivência política.
Foi este cálculo que levou o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso a penar em suas tentativas de reformar a Previdência. As votações enfrentaram a oposição do PT, que estava em rota ascendente nos anos 1990, com resultados crescentes nas eleições para as Câmaras de vereadores, prefeituras e Câmara dos Deputados. Votar com o governo na supressão de direitos sociais era entregar aos petistas discurso eleitoral para os embates subsequentes.
Tanto que a reforma só viria mesmo no primeiro ano do governo Luiz Inácio Lula da Silva que não tinha a maioria de FHC mas levou o Congresso a aprovar a contribuição de inativos e o fim da integralidade do benefício para servidores. Ao capitanear a votação, no episódio que resultou no expurgo dos fundadores do PSol, o PT asseguraria aos parlamentares que a massa lulista não se voltaria contra aqueles que avalizaram as reformas de seu governo.
Na votação da PEC dos gastos, a folga de 58 votos se traduziu no desdém com que os discursos dos parlamentares de esquerda foram recebidos ao longo da sessão. Já passava da 1 da manhã, quando Bohn Gass, deputado federal petista eleito com o apoio de movimentos sociais gaúchos ligados à terra, subiu à tribuna. Comparou a PEC dos gastos ao AI-5 do golpe de 1964, pelo poder de consolidar a ordem iniciada com o impeachment: "Com o rentista, fala fino. Com o pobre, fala grosso".
Henrique Fontana, médico, ex-secretário de saúde da prefeitura de Porto Alegre, e um dos mais respeitados parlamentares da bancada gaúcha do PT, foi igualmente ignorado pelos oradores que se sucederam quando acusou o "fundamentalismo de mercado" de condenar a saúde pública de um país que gasta com o setor U$ 474 per capita, U$ 266 a menos que o Uruguai.
No Rio Grande do Sul de Gass e Fontana, em que já elegeu dois governadores e três prefeitos da capital, o PT se limitou, no primeiro turno das eleições municipais, a 38 prefeitos e 472 vereadores. O apurado é menos de 30% do que elegeram tanto o PMDB quanto o PP.
O desdém se estendeu ao PSol, partido que cresceu sobre os escombros do PT mas ainda não exibe musculatura para liderar uma frente de esquerda capaz de intimidar os aliados de Temer. No mais aguerrido dos discursos da noite, o deputado paulista Ivan Valente citou o economista americano Paul Krugman ("É o gasto público que gera renda") e acusou os governistas de usurparem os direitos da juventude por 20 anos: "Vocês vão pagar um preço alto por isso". A fala de Valente foi abafada, do começo ao fim, pelos gritos de "puxadinho" vindo do plenário. O apelido foi dado ao PSol pela aliança com o PT no processo do impeachment.
Se o desempenho do PT nas eleições municipais estendeu o tapete vermelho para a onda de reformas liberais, a falta de foco do discurso da esquerda fez o resto do serviço. Na véspera da votação, 554 entidades empresariais se espraiaram em anúncio de quatro páginas de jornal para subscrever o apoio à PEC dos gastos.
No ano passado essas entidades foram beneficiárias de desonerações fiscais no valor R$ 105 bilhões, mais do que o orçamento somado de nove programas sociais (Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida, Luz para Todos, Fies, Prouni, Pronatec, Pronaf, Brasil Carinhoso, Brasil Sorridente). A reversão de algumas delas, como a da cesta básica, tem um custo social significativo. Não é o caso de outras desonerações como a da nafta, que tem 70% de seu consumo concentrado em uma única empresa (Braskem).
Diversos parlamentares se sucederam na acusação ao PT pelo legado de 12 milhões de desempregados. A nenhum deles ocorreu cobrar do governo o compromisso de que as desonerações não serão renovadas ao final de sua vigência. Tampouco se questionou por que a receita de R$ 36 bilhões do Sistema S, que sustenta as entidades do manifesto, não compõem o esforço fiscal do governo. A fartura é tamanha que cada uma das 40 diretorias regionais do Ciesp de Paulo Skaf, de Matão a Santa Barbara d'Oeste, do Ciesp, entrou no rateio do anúncio.
Se o orçamento da saúde e da educação estará protegido em 2017, ano de penosa travessia para Temer, não há indicação de que assim permanecerá nos anos subsequentes, quando os setores mais organizados se mobilizarão para evitar que o ajuste lhes cobre a fatura. Não há na PEC, por exemplo, nenhuma garantia de que o orçamento do SUS venha a ser menos afetado do que a parcela de mais de R$ 25 bilhões que a classe média, anualmente, isenta no seu Imposto de Renda com gastos em saúde.
Aprisionada pelas corporações, a oposição deixou ainda escapar o discurso, que começa a ser esboçado pelo governo, de que os parlamentares terão que dar sua contribuição ao ajuste fiscal com a extinção da aposentadoria especial para os novos eleitos.
Depois da reação da magistratura e do ministério público sobre a PEC dos gastos, o governo cala e a oposição consente sobre as aposentadorias no Judiciário. A PEC dos gastos inscreveu na Constituição a lei do mais forte na disputa pelos recursos congelados do Estado a consolidar uma sociedade de castas que apenas o juiz Sérgio Moro acredita ter acabado.
Uma parte do PT custa a aceitar as evidências de que, sem ajuste, o Estado terá que apelar à inflação para se financiar e penalizar aqueles que dela estão mais desprotegidos. A picada aberta pela PEC dos gastos ameaça deixar ao relento contingentes tão expressivos quanto aqueles que se viu na crise da década de 1980. A diferença é que naqueles anos a esquerda acalentava um projeto de poder que pautou, em grande parte, os avanços sociais das últimas décadas. Hoje o naufrágio deste projeto instalou a inércia e obstrui a cobrança pela fatura do ajuste.
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