- O Estado de S.Paulo
• Não estaremos a perseguir uma miragem, uma reforma política que tudo resolva?
Alguém já disse que o Brasil é o país do oito ou oitenta. Para nós, passar do pessimismo ao otimismo e vice-versa é como trocar de camisa. Tudo no vapt-vupt, como um pêndulo acelerado. É bem isso o que acontece em nossos debates sobre as instituições políticas. Um dia afirmamos peremptoriamente que nunca superamos o estágio das capitanias hereditárias, tempo de Sarney e Renan Calheiros. No dia seguinte nos ombreamos com as democracias mais avançadas, temos o melhor sistema político do mundo, os melhores partidos, lideranças admiráveis.
Em certos momentos, somos bipolares. Sustentamos avaliações opostas ao mesmo tempo, como se fosse a coisa mais natural do mundo. A presente conjuntura é desse tipo, e, convenhamos, a bipolaridade faz pleno sentido. No polo positivo, o governo Temer está conseguindo pôr alguma ordem na casa. Aproveitando-se da tremedeira que tomou conta do Congresso Nacional, vai aos poucos consertando o estrago deixado pelo populismo de Lula e Dilma Rousseff. Aprovou uma medida importante, a PEC do Teto de gastos, e está para sancionar a reforma do ensino médio – reforma tímida, mas melhor que nada. No polo negativo, carnificinas nos presídios, greve da Polícia Militar e desordem no Espírito Santo, febre amarela batendo às nossas portas. Sem esquecer a dengue, a chikungunya e a zika.
Voltemos, porém, à questão das instituições. À parte a avaliação folclórica que nos remete de volta às capitanias hereditárias, a maioria das (vá lá) “elites” brasileiras tem uma visão razoavelmente otimista. Considera que avançamos bastante na construção de uma democracia representativa. Eu compartilho essa opinião, e vou mais longe. Ao contrário do que às vezes se afirma, nossa democracia não é “jovem”. Não nasceu anteontem e da noite para o dia, depois dos governos militares. Iniciada ao tempo da Independência, ela aos poucos se firmou. Nessa acepção histórica ampla, faz sentido afirmar que temos instituições políticas bastante robustas. Mas dizer que são robustas não significa que estejam totalmente consolidadas, a salvo de retrocessos ou rupturas. Se até os americanos vivem hoje um pressentimento de crise institucional, quem em sã consciência dirá que o desenvolvimento democrático brasileiro é irreversível?
Entendamo-nos quanto à ideia de instituição. Numa democracia institucionalmente forte, Lula, João Santana e meia dúzia de empreiteiras não seriam capazes de provocar um retrocesso como o iniciado em 2010, quando puseram a senhora Dilma Rousseff na Presidência da República. Onde há instituições de verdade, não há como restringir e falsificar naquele grau o processo sucessório. Considerem-se os partidos políticos. Um partido só se qualifica como instituição na medida em que consegue se contrapor aos grupos de interesse, sobrepondo-se a eles e impedindo-os de impor seus particularismos ao conjunto da sociedade. O partido-instituição existe para frear tais particularismos, submetendo-os ao crivo de critérios mais abrangentes. Mas no Brasil de hoje, como todo mundo sabe, uma única empreiteira botou no bolso quase todo o sistema partidário, a começar pelo outrora orgulhoso PT e pelo ainda poderoso PMDB.
E o avanço do crime organizado, o caos que ora se observa no Espírito Santo, as epidemias, o que indicam, afinal, senão a declinante capacidade do Estado de cumprir algumas de suas funções precípuas? O que, senão um grave decréscimo na “estatalidade” (stateness) de nossa estrutura de governo?
Os mais otimistas dirão que tudo se resolverá logo que implantarmos uma boa reforma política. Mas uma “boa reforma política” o que é, exatamente? Não estaremos a perseguir uma miragem?
Por definição, instituições são estruturas estáveis. Organizações que mudam a toda hora não desenvolvem uma identidade própria, a ideia de uma missão que lhe é inerente, objetivos e um modus faciendi específicos. Visto por esse ângulo, o problema com o Estado brasileiro é o emaranhado de compromissos corporativistas que lhe servem de base. É uma classe política que parece ter perdido por completo a ideia da política como uma vocação nobre. Sua estabilidade é, pois, inercial, conservadora no mau sentido do termo. Uma estabilidade quase irreformável.
Esta hipótese, se for correta, tem uma consequência importante. Significa que o Brasil dificilmente se beneficiará de um empuxo, uma inflexão política mais forte, que o liberte da chamada “armadilha da renda média”. Supondo um crescimento anual médio do PIB de 3%, levaremos uma geração inteira para alcançar os países mais pobres da Europa – Grécia e Portugal. E podemos dar de barato que lá chegaremos com bolsões de pobreza e desigualdades de renda muito piores do que os prevalecentes em tais países.
Os três países mais importantes entre os que se industrializaram tardiamente se beneficiaram de fortes empuxos políticos. Na Alemanha, o empuxo da unificação e da vitória militar sobre a França, em 1870-1871. Nos Estados Unidos, a vitória do Norte contra o Sul na guerra civil de 1861-1865, a ocupação do Oeste e uma reforma educacional abrangente, sem paralelo no mundo, por meio dos chamados land grant colleges, voltados para o desenvolvimento de tecnologias. No Japão, a restauração da mística monárquica do período Meiji e a consequente ascensão de uma elite jovem, que reformou o país de alto a baixo em menos de uma década, quebrando a espinha dorsal da casta samurai, implantando um sistema nacional de educação e abrindo o país ao exterior, buscando know-how por toda parte.
*Cientista político, é sócio-diretor da Augurium Consultoria e membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências. Seu último livro, ‘Liberais e antiliberais: a luta ideológica de nosso tempo’ (Companhia das Letras, 2016)
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