Maior investigação de combate à corrupção do país chega a uma nova fase, cercada de receios de que possa ser dificultada ao mirar cúpula de partidos
O futuro da Lava-Jato
Por Zínia Baeta e André Guilherme Vieira | Eu & Fim de Semana | Valor Econômico
SÃO PAULO E CURITIBA - Maior e mais conhecida investigação já deflagrada pela Polícia Federal e pelo Ministério Público Federal no combate à corrupção e lavagem de dinheiro no país, a Operação Lava-Jato completa três anos na próxima semana sem previsão de término, com aprovação popular, mas sob críticas de advogados e grande expectativa da sociedade em relação ao seu desfecho.
Na gigantesca contabilidade da operação estão 1.434 procedimentos instaurados, 198 prisões (preventivas, temporárias e em flagrante), quase 200 acordos de delação premiada (incluindo as recentes delações da Odebrecht) e dezenas em negociação, nove acordos de leniência com empresas e 57 acusações criminais apresentadas pelo Ministério Público Federal, além de 125 condenações na primeira instância da Justiça Federal.
Apesar da popularidade que as investigações ganharam e de uma aprovação de 66% de Sergio Moro na condução do caso, segundo a pesquisa Barômetro Político da consultoria Ipsos, o juiz da 13ª Vara Criminal de Curitiba demonstra certo receio quanto ao que de fato mudará no Brasil pós Lava-Jato.
"Eu realmente acho que há risco de retrocesso. Fatos como aquela tentativa de anistia [A Câmara aprovou versão de pacote anticorrupção sem incluir o artigo que anistiava o caixa dois, proposta negociada nos bastidores por parlamentares e retirada de pauta após pressões de integrantes da Lava-Jato]", disse Moro em entrevista exclusiva ao Valor. "Digo a tentativa de anistia geral. E ainda tem uma incógnita, porque há muitas investigações em andamento. Teremos de ver qual será o destino delas.
A existência de uma articulação forte e permanente em Brasília para pôr fim à Lava-Jato é hoje uma das maiores preocupações de acadêmicos. "Minha leitura é de que a etapa coordenada pelo Moro está chegando ao fim, pois as denúncias e acordos relativos à Petrobras estão se esgotando", diz Oscar Vilhena, professor de direito constitucional da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas (FGV-SP). Dessa forma, as próximas etapas da operação passariam a se concentrar em Brasília para os investigados com foro privilegiado (Supremo Tribunal Federal e Procuradoria-Geral da República). "A grande questão é se o Ministério Público no âmbito do gabinete da PGR terá a mesma disposição que o MPF em Curitiba", questiona o professor.
A força-tarefa do Ministério Público Federal teve início em 17 de março de 2014 em Curitiba (inicialmente com apenas 4 dos atuais 13 procuradores) em um horizonte muito aquém daquele que se viu nos períodos seguintes. A investigação de corrupção na Petrobras - que culminou na prisão do ex-diretor de Abastecimento da empresa Paulo Roberto Costa - colocou em teste um novo modelo de condução de processos penais e o uso da delação premiada no país, instituída no ano anterior pela Lei das Organizações Criminosas. O instrumento se mostrou essencial para a linha de conduta adotada pelos investigadores.
O procurador da República Roberson Pozzobon, integrante da força-tarefa da Lava-Jato em Curitiba, diz que naquele momento não se imaginava o alcance que a operação teria, pois o cenário era de crimes financeiros e evasão de divisas. "Não havia um contexto de corrupção endêmica, revelada posteriormente, não se tinha a perspectiva de envolvimento de altos agentes públicos, dos maiores empresários e das maiores empreiteiras do país", diz.
Atualmente em sua 38ª fase de investigação, é quase impossível quantificar o número de advogados envolvidos na defesa de suspeitos implicados nos crimes investigados pela Lava-Jato. Estima-se algo em torno de mil profissionais de dezenas de escritórios de todo o país, atuando de forma direta e indireta nos casos. Alguns defensores já contam com 20 clientes na operação. A Lava-Jato e a delação premiada abriram uma nova frente para criminalistas, até então habituados à sustentação de teses em Cortes superiores para o trancamento de ações penais e a consequente extinção de processos sobre corrupção.
• Para Oscar Vilhena, da FGV, etapa liderada por Sergio Moro está chegando ao fim, pois processos relativos à Petrobras estão se esgotando
O último e maior acordo fechado pelos procuradores é o da Odebrecht, envolvendo 77 executivos, funcionários e ex-funcionários do grupo. Ao que tudo indica, tratou-se não somente do mais amplo e demorado, como também o mais complexo e difícil já assinado pelo Ministério Público.
Segundo um dos advogados da Odebrecht ouvidos pelo Valor, o processo de construir uma negociação começou após a prisão do empresário Marcelo Odebrecht, ocorrida em 19 de junho de 2015 durante a fase Erga Omnes da operação. Mas a resistência interna era imensa, a desconfiança, recíproca, e a animosidade do MPF também - parte considerável do Ministério Público Federal era contra a assinatura de um acordo -, e por isso a empresa teria chegado tardiamente a essa opção.
"No fundo, esse processo é uma rendição. Não é algo em que você vai falar só sobre isso ou só sobre aquilo. É um acordo em que você tem de falar tudo. Não há como conter, porque se for descoberta qualquer coisa além, o acordo pode ser rompido", diz o advogado. Em sua avaliação, alguns procuradores realmente desejavam que a Odebrecht quebrasse. A empresa serviria de exemplo para o Brasil.
A linha das investigações, segundo Pozzobon, é desde o início focada em fatos e mérito das questões, deixando-se de lado "teses processualísticas importadas de outros países". Nesse cenário, as informações obtidas por meio das delações premiadas e os acordos de leniência passaram a ser primordiais.
Na Lava-Jato, o instrumento foi inaugurado por Paulo Roberto Costa, o doleiro Alberto Youssef, o empresário Augusto Mendonça e Pedro Barusco, ex-gerente de engenharia da Petrobras. "Os colaboradores viram que tínhamos provas, que os processos estavam começando a caminhar bem e que eles em breve seriam sentenciados com penas altas."
Pedro Barusco, por meio de acordo, restituiu alguns milhões de dólares ao país. "Um gerente da Petrobras restituindo US$ 100 milhões que possuía em contas no exterior mostrou que a situação era muito mais grave do que se pensava", lembra o procurador.
Um dos advogados precursores na atuação em acordos de delação, Adriano Sérgio Nunes Bretas, de Curitiba, afirma que com centenas de delatores já existentes na operação, está cada vez mais alto o preço para fechar um novo acordo. "O envolvido que se antecipa no começo de uma investigação consegue um acordo com um relativo conforto, porque o preço vai subindo à medida que os investigadores conseguem informações", diz. Segundo ele, os que esperam muito perdem o timing, e aí o benefício não é muito generoso. O especialista em delação premiada não esconde o fato de se orientar pelo entendimento jurídico firmado por Moro sobre o tema. O juiz foi o primeiro magistrado a utilizar o instituto da delação, antes de sua regulamentação legislativa, durante o caso Banestado, na década de 90.
Bretas, que divide a defesa da maior parte dos clientes com outro criminalista do Paraná, Antonio Figueiredo Basto, atende a mais de 20 envolvidos na Lava-Jato, somente em Curitiba. Participou das negociações para acordos, por exemplo, de Youssef, do empreiteiro Ricardo Pessoa, da UTC, de Valmir Pinheiro, ex-diretor da UTC, de Pedro Barusco e do senador cassado Delcídio do Amaral. No fim de 2016 os dois abriram um escritório em parceria, no Rio, de olho na demanda da Lava-Jato fluminense. Ambos atuaram na delação premiada dos doleiros e irmãos Renato e Marcelo Chebar, que entregaram ao MPF as entranhas de um megaesquema de corrupção com desvios de mais de US$ 100 milhões e contas no exterior que seria liderado pelo ex-governador do Rio Sérgio Cabral (PMDB).
Quando Youssef foi preso, em 17 de março de 2014, Rafael Angulo (que entregava dinheiro em espécie a políticos a mando do doleiro) ligou para o advogado Bretas, preocupado com o que poderia acontecer. "Eu falei pra ele: 'Olha, se não tem mandado de prisão contra você, não vá a lugar algum, fique de sobreaviso, fique em casa'. Aí ele disse: 'Mas o pessoal [a Polícia Federal] tá no escritório'." A orientação foi a de que ele não fosse ao escritório, porque ali poderia ser preso em flagrante, a depender das circunstâncias. Na mesma semana, o advogado Antonio Figueiredo Basto o convidou para defenderem conjuntamente Youssef. Atualmente Bretas trabalha na tentativa de fechar o acordo de delação de Renato Duque, ex-diretor de Serviços da Petrobras, já condenado a mais de 53 anos por crimes relacionados à petrolífera.
Bretas garante que as tratativas para o acordo com Duque avançaram. Mas desconversa quando indagado sobre o que o ex-diretor ainda teria de relevante a oferecer, em um universo de tantos delatores. "Esta é uma negociação extremamente sensível, já sofreu muitos revezes. Estamos avançando, mas não posso dizer absolutamente nada." Bretas, no entanto, afirma que Duque tem informações importantes a entregar.
Investigados que negociam acordo de delação premiada assinam um compromisso de confidencialidade com o MPF, em que defesa, réu e procuradores concordam em manter sigilo sobre o que é discutido na fase negocial que antecede o fechamento da delação. Na hipótese de o acordo não ser assinado, as informações fornecidas pelo réu não poderão ser usadas pelo MPF para acusá-lo.
Em agosto do ano passado, por exemplo, a negociação para a delação do empreiteiro José Adelmário Pinheiro Filho, o Leo Pinheiro, sócio da OAS - que estava em estágio avançado -, acabou travada, após vazarem informações sobre uma vistoria realizada por engenheiros da OAS no apartamento do ministro do STF, Dias Toffoli, que teria apresentado problemas de infiltração.
No caso da Odebrecht, a demora da companhia e sua situação financeira delicada fizeram com que sua posição negocial fosse muito ruim. Segundo um dos advogados da companhia que prefere não se identificar, o mais difícil foi construir credibilidade perante o MPF, pois os procuradores precisavam perceber que a Odebrecht estava disposta a mostrar todos os seus documentos, virar a página e se tornar uma empresa com novos critérios de compliance.
"Acho que os procuradores começaram a virar a chave em razão do valor das informações apresentadas e depois pelo dinheiro, um acordo em que a empresa desembolsa R$ 7 bilhões", diz. De acordo com ele, os investigadores entenderam que, se batessem demais, a empresa quebraria. "Ainda mais com o DoJ [Departamento de Justiça dos EUA], que precipitou uma crise na América Latina ao fazer a divulgação de informações na internet. Contávamos com um tempo maior para que as informações do exterior viessem. A Odebrecht é uma empresa que tem 80% das receitas vindas do exterior, e essa cacetada abalou bem", diz.
Em dezembro de 2016, quando a empresa fechou um acordo com Brasil, Suíça e os EUA, o DoJ divulgou dados da negociação na internet sem identificar pessoas, mas citando fatos e valores pagos em propina. As informações geraram reações em diversos países da América do Sul. Nesta semana, o presidente do Peru, Pedro Pablo Kuczynski, pediu que a empresa venda seus ativos e deixe o país.
A expansão das investigações já havia criado ramificações da operação principalmente no Rio de Janeiro. "A Lava-Jato é um grande celeiro de provas para compartilhar com todo o Brasil. Diversas operações são deflagradas no Rio, São Paulo, Brasília, Pernambuco e outros Estados a partir de provas que foram obtidas e compartilhadas judicialmente, que permitem que novos focos de investigação sejam desenvolvidos", afirma Pozzobon.
• "Faz sentido a investigação ter ido partido por partido, pois [...] a Lava-Jato poderia não ter sobrevivido", diz Rafael Queiroz (USP)
No Rio, por exemplo, a operação teve desdobramentos cuja consequência foi a prisão do ex-governador Sérgio Cabral (PMDB), acusado de corrupção, lavagem e de formação de organização criminosa. Dessa operação nasceu uma segunda, que culminou na prisão do empresário Eike Batista, acusado de pagar US$ 16,5 milhões a Sérgio Cabral, por meio da conta bancária da holding do Grupo X, a Golden Rock, no TAG Bank, no Panamá.
Professor de filosofia e teoria do direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), Rafael Mafei Rabelo Queiroz acredita que a prova dos noves da Lava-Jato ainda virá com a delação premiada dos envolvidos da Odebrecht, pois ela poderá chegar a membros da cúpula de partidos ainda não atingidos. Será a partir de agora, segundo ele, que a operação poderá demonstrar sua neutralidade e imparcialidade e desfazer a crítica de que sua orientação foi de acordo com a coloração dos partidos. "Faz sentido a investigação ter ido partido por partido, pois se fosse contra todos ao mesmo tempo, a Lava-Jato poderia não ter sobrevivido às pressões políticas."
Para o professor é necessário, porém, que a cúpula do Judiciário (Superior Tribunal de Justiça e o STF) continue a apoiar a operação. Em sua análise, se o Supremo e o STJ começarem a invalidar provas, a operação poderá se desmanchar como ocorreu com a Castelo de Areia. Em 2011, o processo penal por supostos crimes financeiros e lavagem de dinheiro, tendo como centro das operações o Grupo Camargo Corrêa, foi anulado pelo STJ e posteriormente confirmado pelo Supremo. Entendeu-se que as provas contra os acusados foram obtidas de fontes anônimas, o que as tornaram nulas.
O professor Oscar Vilhena lembra que no Supremo alguns ministros já se posicionaram publicamente contra a Lava-Jato. Por outro lado, o procurador da força-tarefa, Roberson Pozzobon, espera que não ocorra no Brasil o que se viu na Itália na Operação Mãos Limpas: leis absolvendo crimes, ou anistias que tornem a investigação muito mais difícil ou impossível. A megaoperação italiana investigou inúmeros casos de corrupção durante a década de 90 no país, condenando à prisão políticos, empresários e magistrados.
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