Ao tirar o sigilo de conversas gravadas no rastro da delação dos donos da JBS, o STF divulgou não apenas gravações incluídas no inquérito, mas também áudios irrelevantes para a apuração porque envolvem terceiros e não contêm indícios de crimes. Entre os interlocutores de investigados, há também um jornalista, cujo sigilo da fonte é garantido pela Constituição. Procurada, a presidente do STF, Cármen Lúcia, sem explicar a divulgação dos áudios, afirmou em nota: “O Supremo tem jurisprudência no sentido de se respeitar integralmente o direito constitucional ao sigilo da fonte.” Juristas criticaram a divulgação de fitas não incluídas no inquérito.
Supremo divulga conversas de jornalista
Áudios de telefonemas com investigados na Operação Lava-Jato não tinham indícios de práticas de crimes
- O Globo
-SÃO PAULO- Ao retirar o sigilo das investigações da Lava-Jato feitas a partir das delações da JBS, o Supremo Tribunal Federal divulgou também os arquivos de áudio de mais de 2.800 ligações de alvos da operação, em conversas sem nenhuma ligação com a prática de crimes e com pessoas contra quem não pesava nenhum tipo de acusação.
Embora tenha sido o STF que liberou o acesso aos arquivos, ainda não estava claro, até ontem à noite, como nem por quê as conversas tinham sido divulgadas, já que não tinham nenhuma relevância para o caso sendo apurado.
As gravações foram realizadas pela Polícia Federal, com autorização judicial, durante o monitoramento do senador afastado Aécio Neves (PSDB), de sua irmã, Andrea, do deputado federal Rodrigo Rocha Loures e de outros implicados na delação dos donos da JBS.
A revelação de uma conversa do jornalista Reinaldo Azevedo com Andrea Neves o levou a decidir deixar a revista “Veja”, onde tinha um blog havia 12 anos. No diálogo, ele critica uma reportagem feita pela própria revista, que trata de uma conta de Aécio em Nova York, não comprovada até agora.
Depois que o caso veio à tona, a Procuradoria-Geral da República afirmou que não foi a responsável pela divulgação dos arquivos. O material havia sido disponibilizado pelo próprio Supremo quando o relator da Lava-Jato, ministro Edson Fachin, retirou o sigilo de todos os arquivos que constavam da investigação sobre a delação da JBS. Só que havia os áudios relevantes para o caso, que foram transcritas, e esse outro bloco de telefonemas, sem conteúdo relacionado às investigações.
O Supremo, a Procuradoria e a Polícia Federal divulgaram notas sobre o caso, mas nenhum delas esclareceu as circunstâncias exatas que levaram à divulgação do material.
A presidente do Supremo, Cármen Lúcia, defendeu o sigilo entre a fonte e o jornalista, garantido pela Constituição, mas não explicou a divulgação dos áudios: “O Supremo Tribunal Federal tem jurisprudência consolidada no sentido de se respeitar integralmente o direito constitucional ao sigilo da fonte. A presidente do STF reitera o seu firme compromisso, que tem sido de toda vida, de lutar e, agora, como juíza, de garantir o integral respeito a esse direito constitucional".
Em nota, a Polícia Federal, informou que os diálogos foram interceptados em abril deste ano, com autorização de Fachin, mas afirmou que não incluiu a conversa nos documentos. “O referido diálogo não foi lançado em qualquer dos autos circunstanciados produzidos no âmbito da mencionada ação cautelar, uma vez que as referidas conversas não diziam respeito ao objeto da investigação”, diz a nota. A PF afirmou que, como determina a lei, “todas as conversas dos investigados são gravadas” e que a mesm regra “determina que somente o juiz do caso pode decidir pela inutilização de áudios que não sejam de interesse da investigação”. Termina dizendo que a PGR também teve acesso à íntegra das gravações.
A Procuradoria-Geral da República informou, também em nota, que “não anexou, não divulgou, não transcreveu, não utilizou como fundamento de nenhum pedido, nem juntou o referido diálogo aos autos" da ação.
A PGR afirmou ainda que somente utiliza conversas apontadas pela Polícia Federal, em relatórios, como possivelmente relevantes para o fato investigado, o que não ocorreu com o diálogo entre Azevedo e Andrea: “Todas as conversas utilizadas pela PGR em suas petições constam tão somente dos relatórios produzidos pela Polícia Federal, que destaca os diálogos que podem ser relevantes para o fato investigado. Neste caso específico, não foi apontada a referida conversa”.
SIGILO DA FONTE
A divulgação das conversas entre os investigados e um jornalista é especialmente problemática porque fere o artigo 5º, inciso XIV da Constituição, que atesta que está “assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”.
Reinaldo vinha fazendo duros ataques à Lava-Jato e, num primeiro momento, a divulgação de sua conversa foi interpretada como uma retaliação às críticas. Os diálogos foram divulgados inicialmente pelo site “BuzzFeed”.
Em sua última nota publicada ontem à tarde no site de “Veja”, o jornalista anuncia o pedido de demissão e critica o vazamento da conversa. Azevedo ressalta que a transcrição do diálogo “não guarda relação com o objeto da investigação” e que tornar público esse tipo de conversa é, segundo ele, uma maneira de intimidar jornalistas.
Em outra parte do diálogo, ainda de acordo com o “BuzzFeed”, Reinaldo e Andrea criticam a Operação Lava-Jato.
Especialistas ouvidos pelo GLOBO criticaram a divulgação dos áudios. O professor de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) Gustavo Binenbojm afirmou que a divulgação representa uma ameaça ao trabalho dos jornalistas.
— Mais importante do que saber quem é o pai da criança — e houve um responsável, jabuti não sobe em árvore —,é a garantia constitucional do sigilo da fonte. Se ela começa a ser corrompida em um caso, vai ser corrompida em todos, porque gera uma insegurança sistêmica (para o trabalho do jornalista). Se não havia indício de nada, por que juntar (ao processo)? — disse.
Com escritório especializado em temas relacionados à liberdade de expressão, o advogado Alexandre Fidalgo também foi na mesma linha:
— O sigilo de uma fonte é principio básico da liberdade de expressão. O jornalista, sem fonte, não exerce sua profissão. Uma democracia não é plena se ela não garantir a este profissional sigilo absoluto de suas conversas.
Fidalgo lembra que para um jornalista, “é fundamental ter boas fontes”:
— As boas fontes estão no centro da informação. Esta é uma conversa absolutamente natural no Estado Democrático de Direito.
Em nota sobre o caso, a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) informou que “vê com preocupação a violação do sigilo de fonte".
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