- Folha de S. Paulo
Sob Trump, potência dominante vandaliza sistema que ela esculpiu
A "armadilha de Tucídides" ressurgiu num editorial da revista "The Economist" que alerta para as agressivas táticas usadas pela China para estender sua influência externa. Trata-se de conceito oriundo da Guerra do Peloponeso (431-404 a.C.): a ascensão de uma nova potência curva a geometria do sistema internacional até que a tensão explode na forma de guerra com a potência tradicional. O voto da Assembleia Geral da ONU, na quinta (21), indica que, sob Trump, a potência dominante vandaliza o sistema que ela mesma esculpiu, acelerando a tendência de colapso.
"Anotaremos os nomes dos países que votarem contra nós", ameaçou Nikki Haley, a embaixadora americana na ONU, referindo-se à resolução de condenação ao reconhecimento de Jerusalém como capital de Israel por Washington. "Economizaremos bastante", completou Trump, sugerindo que os EUA retaliarão por meio de cortes generalizados de ajuda financeira e militar. A resolução aprovada por aplastante maioria na Assembleia Geral inspirou-se em texto vetado pelos EUA no Conselho de Segurança que recebeu o apoio dos outros 14 membros, inclusive Reino Unido e França, aliados na Otan.
Foi patrocinada pelo Egito, aliado crucial no mundo árabe e recipiente de ajuda militar anual de US$ 1,3 bilhão, e pela Turquia, peça-chave da Otan no Mediterrâneo Oriental. Ao "anotar nomes", os EUA cartografam seu próprio isolamento.
O corte da ajuda ao Egito, que depende de aprovação do Congresso americano, reduziria drasticamente a já declinante influência dos EUA no Oriente Médio. Submetida a eventuais retaliações, a Turquia se moveria mais um passo na direção da Rússia. Já o Paquistão, outro recipiente de vultosa ajuda militar que pronunciou-se a favor da resolução, estreitaria sua antiga cooperação com a China. Nos três casos, Washington perderia parcerias vitais no combate ao jihadismo. Derek Chollet, que integrou o Conselho de Segurança Nacional no governo Obama, classificou as declarações de Trump como indisfarçável "ameaça vazia". De fato, os EUA obrigaram seus aliados a chamarem o blefe, precipitando uma dispensável humilhação.
"Nossos cidadãos não mais toleram que continuem a tirar vantagem de nós". A sentença ritual de Trump, repetida uma vez mais, esclarece o ponto de vista do nacionalismo isolacionista.
O personagem que ocupa a Casa Branca enxerga o sistema internacional como um negócio fraudulento pelo qual os aliados exploram os EUA, obtendo proteção militar e mercados para seus produtos em troca de quase nada.
A implicação lógica do argumento é que os EUA precisam derrubar os pilares do sistema injusto, investindo contra a ordem geopolítica global (ONU) e a ordem econômica aberta (comércio), sem se preocupar com a estabilidade das alianças militares (Otan). O caso de Jerusalém inscreve-se na sequência lógica da retirada do Tratado de Paris, de renúncia à Parceria Transpacífica e de contestação das regras do Nafta.
A Liga do Peloponeso nasceu no século 6 a.C., pela imposição da hegemonia de Esparta sobre Corinto, Elis e outras cidades soberanas da península grega. Funcionava como uma aliança militar, oferecendo proteção a seus integrantes. A Pax Americana inclui um elemento similar ao da Liga do Peloponeso, que é a Otan, mas espraia-se sobre um vasto horizonte de instituições multilaterais econômicas e de segurança, algumas das quais servem também aos interesses chineses. Trump sabota deliberadamente essa ordem mundial erguida pelos EUA desde o pós-guerra.
No sistema da Grécia Antiga, Atenas e sua Liga de Delos tinham apenas que confrontar a Liga do Peloponeso. A China, potência emergente, enfrenta uma tarefa mais complexa, de destruição (da hegemonia americana) e preservação (da ordem econômica aberta). Trump facilita-lhe a missão, debilitando os EUA e expondo o mundo à "armadilha de Tucídides".
Nenhum comentário:
Postar um comentário