- Valor Econômico
O presidente americano foi a sensação do evento
A melhor definição das reuniões anuais de Davos é do ilustre ministro Ricupero: "Um circo com muitos picadeiros". Trata-se de uma vitrine para expor as preocupações dos poucos milhares materialmente mais bem-sucedidos cidadãos do mundo com relação aos bilhões que não tiveram a mesma sorte.
O presidente Temer fez muito bem em ir a Davos para sugerir que "o Brasil está de volta". Saiu-se, junto com a sua equipe econômica, muito bem, porque tinha o que mostrar. A sensação de Davos, entretanto, foi o presidente Trump. No seu discurso - surpreendendo o auditório - relativizou o seu conceito de "isolacionismo". Tentou mostrar que "América Primeiro", não é, exatamente, "América Sozinha". Sem surpresa, reafirmou seu preconceito contra a imprensa livre, chamando-a de "nojenta e perversa", por conta do que recebeu uma educada vaia.
Sua mensagem foi clara. "Não pode haver livre comércio se alguns países exploram o sistema às custas de outros"... "Não vamos mais fechar os olhos para práticas econômicas injustas, incluindo o roubo em larga escala de propriedade intelectual, subsídios à indústria e planejamento econômico conduzido pelo Estado". Reabriu as questões que tem tratado com pouca inteligência desde a campanha eleitoral, dando a entender que tudo o que disse pode ser revisto... desde que se mudem as regras do jogo!
O curioso é que o "jogo", a atual "ordem" mundial, é produto do planejamento geopolítico do próprio EUA, desde o fim da Segunda Guerra Mundial. A recuperação rápida da Alemanha e do Japão (ocupados por ele) procurava criar obstáculos (na Europa e na Ásia) à expansão soviética. Por que razão os "economistas" do exército americano da ocupação fixaram taxas de câmbio subvalorizadas (4 marcos/dólar e 360 ienes/dólar) e recomendaram a abertura do mercado americano à sua indústria? E por que o plano Marshall se estendeu até a Coreia do Sul, se não para delimitar as zonas de influência soviética e chinesa?
A própria China é produto de uma rara personalidade (Deng Xiaoping) e do inteligente oportunismo da política externa dos EUA. Quando Mao separou-se de Stalin, juntou a "fome" com a "vontade de comer" que Nixon e Kissinger souberam aproveitar (com a mesma política, câmbio desvalorizado e abertura do mercado americano) para isolar a URSS, que finalmente sucumbiu em 1989. Mas a Rússia não morreu. Recupera-se lentamente, com a habilidade, paciência e ousadia de Putin.
O discurso de Trump foi uma verdadeira confissão de culpa, que deveria ter sido seguida por um pedido de desculpas pela obra americana. O mundo que está aí é produto da "pax americana", isto é, da estratégia geopolítica americana dos últimos 70 anos. O problema central é por que Trump se elegeu, apesar de sua falta de compostura e do seu viés autoritário no que se supõe ser a mais sólida democracia do mundo? A resposta é: porque sua mensagem atingiu setores minoritários que há mais de 30 anos sofrem as agruras da aceitação pelos políticos de uma teoria do comércio internacional que há 40 anos chama a atenção para as "vantagens" da liberdade comercial sem considerar que a adaptação da economia real pode levar à punição e desperdício por muitos anos do mais pobre fator de produção: o trabalho humano.
Os economistas que assessoraram os governos nessa política venderam "ideologia" como ciência. Recentemente pesquisas empíricas mais cuidadosas mostraram que a liberalização do comércio sem as precauções necessárias aumenta mesmo a produtividade do trabalhador que continua empregado. O problema é que, sem atenção necessária aos que deverão ser deslocados, pode gerar um desperdício do fator trabalho acompanhado por uma inconveniente redistribuição da renda.
Um exemplo típico dessa ideologia é a afirmação apodítica do talvez maior teórico do comércio internacional (Paul Krugman, Nobel 2008): "A recomendação dos economistas pela liberdade de comércio é essencialmente unilateral: ao adotá-la, o país serve aos seus próprios interesses, não importa o que os outros façam" ("Journal of Economic Literature", 35(1)1997: 113-120). Perguntem para ele o que pensa hoje, ou melhor, leiam o que ele vem escrevendo (e aconselhando!) mais recentemente...
É claro que a eleição de Trump é um fenômeno muito mais complexo, que tem muitas "causas", algumas não independentes. Em 11/01/2018, o "The New York Times", publicou um interessantíssimo artigo de T.B.Edsal, "Robôs Não Votam, Mas Eles Ajudaram a Eleger Trump", onde usa os resultados de um finíssimo artigo de D.Acemoglu e Restrepo, P. ("Robots and Jobs: Evidence from US Labor Market" - 17/03/2017), que conclui que o uso de mais um robô/mil trabalhadores, tende a reduzir a relação emprego/população entre 0,18% e 0,34% e os salários entre 0,25% e 0,50%. A correlação inversa entre a densidade de robôs/mil trabalhadores e a densidade de votos de Trump é notável, um efeito que se somou às consequências das importações da China e do México.
Diante desses fatos, a conclusão "otimista" de Davos 2018 não pode deixar de ser preocupante.
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Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento.
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