- Folha de S. Paulo
Controvérsia é o que se espera quando se vive numa sociedade democrática e aberta
A deposição de Dilma Rousseff em 2016, afinal, foi ou não um golpe? A resposta depende, obviamente, de como se define “golpe”. Para quem entende o conceito como “ruptura da ordem constitucional”, o impeachment foi legítimo (aplicaram-se as regras do livrinho, segundo a interpretação do juiz natural do caso). Mas também é possível sair-se com várias outras definições nas quais a destituição poderá ser descrita como um golpe.
Precisão vocabular, porém, é o que menos importa na novela da proliferação de cursos intitulados “O Golpe de 2016”, que acaba de ganhar um capítulo internacional. O melhor modelo para explicar o que está acontecendo é o da cognição cultural (CCT, na sigla inglesa) proposto por Dan Kahan, um professor de direito que usa rigor matemático para revolucionar a psicologia.
O que a CCT basicamente diz é que, na esfera pública, crenças às vezes se tornam símbolo de causas e, a partir daí, as pessoas irão afirmar ou negar essas teses não para dizer o que sabem sobre o assunto, mas para mostrar de que lado estão. Não hesitarão em massacrar a matemática para exibir fidelidade ao grupo cultural a que pertencem.
Kahan mostra esse efeito através de uma série de experimentos. Num dos mais bacanas, ao qual já aludi aqui, os sujeitos testados não têm dificuldade para fazer corretamente um exercício matemático quando ele aparece num contexto neutro (a eficiência de um protetor solar), mas erram, quando a mesma conta surge num exemplo ideologicamente significativo (a eficácia do porte de armas para prevenir o crime). O erro é sempre para o lado das preferências políticas das cobaias.
Para não terminar num tom muito desanimador, vale lembrar que esse tipo de controvérsia é exatamente o que se espera quando se vive numa sociedade democrática e aberta, na qual nenhuma instituição detém o monopólio do que pode ser dito.
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