- O Globo
Estamento militar quer se recolocar na política. Tenta construir projeto intervencionista. Não sabe de onde partir
Em outubro de 1891, Joaquim Nabuco, em carta enviada ao amigo Aníbal Falcão, escreveu: “Já lhe respondi que se quisesse entrar novamente em política, primeiro assentaria praça (é um pouco tarde, não lhe parece?) por estar certo de que o melhor governo que a República pudesse dar ao país seria incapaz de receber direção que não partisse dos próprios quartéis. Vocês, republicanos, substituíram a monarquia pelo militarismo sabendo o que faziam, e estão convencidos de que a mudança foi um bem. Eu […] pensei sempre que seria mais fácil embarcar uma família do que licenciar um exército.”
Até 1889, os militares tinham papel pouco relevante na cena nacional. O militarismo era um mal platino. A sucessão de golpes de Estado, típica da região, era inexistente no Brasil. No Segundo Reinado (1840-1889), a maioria dos ministros do Exército e da Marinha foi civil. As atribuições das Forças Armadas estavam determinadas nos artigos 145 a 150 da Constituição. A obediência ao Poder Executivo era clara: “a força militar é essencialmente obediente; jamais se poderá reunir sem que lhe seja ordenado pela autoridade legítima.” (artigo 147)
As Forças Armadas foram arrastadas à política, agindo corporativamente, quando da Questão Militar. Os liberais foram os principais agentes naquele processo. Estimularam a desobediência castrense acreditando que, dessa forma, enfraqueceriam seus adversários, os conservadores. Ironicamente, em novembro de 1889, foram derrubados — e com eles, a monarquia — por um golpe militar.
A entrada dos militares na política foi nociva ao país e às Forças Armadas. Na maioria dos estados — antigas províncias — a República foi proclamada pelas guarnições militares. O entusiasmo pela política foi tão grande que para a Assembleia Constituinte, escolhida em setembro de 1890, foram eleitos 54 constituintes militares: 40 deputados e 14 senadores. Desde então, tiveram papel permanente na política, participando ativamente dos embates eleitorais e agindo como uma corporação que estaria acima das instituições, como uma espécie de reserva moral da nação, um caricato Poder Moderador.
Nos anos 1920, o militarismo renasceu como elemento renovador da política. O tenentismo serviu como receptáculo reunindo a insatisfação militar da jovem oficialidade com os rumos do país. Tinha apoio civil. Mas, na sua essência, desprezavam a política e os “casacas”, forma depreciativa como se referiam à elite dirigente. O salvacionismo levou às rebeliões de 1922, 1924 e à Coluna Prestes. E, em 1930, chegou ao poder sob direção — ironia da história — de um civil. Tomaram e expandiram o aparelho de Estado.
Determinaram os rumos do país tanto nos momentos democráticos, como nos autoritários. Basta recordar que durante o populismo (1945-1964), nas quatro eleições presidenciais, sempre houve candidatos militares. Mesmo assim — ou apesar disso — estiveram presentes nas conspirações e golpes ocorridos no período, como na pressão contra a posse de Getúlio Vargas, em 1951, na crise de agosto de 1954, nos dois golpes de Estado de novembro de 1955, nas revoltas de Jacareacanga e Aragarças no governo Juscelino Kubitschek, na crise da renúncia de Jânio Quadros, em agosto de 1961, e, finalmente na derrubada de João Goulart, em abril de 1964.
De 1964 a 1985, o militarismo nunca foi tão dominante. Determinou o rumo do país, inclusive do processo de transição para o regime civil. Centenas de militares ocuparam postos na estrutura estatal. As polêmicas castrenses ocuparam o espaço da política. Tudo era definido de acordo com os interesses das Forças Armadas. Os cidadãos eram meros espectadores, pois havia brasileiros mais iguais que outros. Isto foi absolutamente nocivo ao aperfeiçoamento profissional das três armas e — por mais paradoxal que seja — à segurança nacional, tão propalada pelos generais-presidentes.
Os governos civis não conseguiram colocar os militares nas funções constitucionais e muito menos elaborar uma doutrina que definisse claramente o papel das Forças Armadas. Também — forçoso reconhecer — as lideranças castrenses não souberam produzir propostas que pudessem ser debatidas pela sociedade destacando, por exemplo, a importância de um país com as dimensões do Brasil ter um orçamento militar adequado. Ficaram na defensiva tentando legitimar os atos dos anos 1964-1985. Perderam tempo. Este não era o principal embate. Optaram pelo discurso, ao invés da ação.
Agora, ainda sem clareza do que fazer, o estamento militar quer se recolocar na política. Tenta construir um projeto intervencionista. Não sabe de onde partir, nem como fazer. Buscar no guarda-roupa da história a roupagem tenentista vai transformar a ação das Forças Armadas numa comédia pastelão. As sucessivas declarações políticas de altos oficiais violam o regulamento disciplinar das três forças. E não passam de respostas desesperadas, símbolos da esterilidade corporativa.
Pior será se os militares forem seduzidos pelas novas vivandeiras que rondam os quartéis. São os oportunistas de sempre. Para as Forças Armadas, quanto mais distantes da política partidária, melhor. Mais ainda do atual processo eleitoral para a Presidência da República. Desenterrar o modelo do soldado-cidadão, que serviu para justificar o golpe militar republicano e as diversas intervenções ao longo do século XX, conduzirá o país e as Forças Armadas a uma grave crise política e institucional. A advertência de Joaquim Nabuco está de pé. Não foi ouvida em 1889. Espero que seja ouvida agora.
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Marco Antonio Villa é historiador
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