Nelson Pereira dos Santos foi um sóbrio observador do Brasil, retratando os excluídos sem demagogia
André Miranda | O Globo
Em 2011, Nelson Pereira dos Santos me ligou. “Oi, André, aqui é o Nelson, avô da Mila.” Ele queria falar sobre seu filme “A música segundo Tom Jobim”. Era um cineasta de 80 e tantos anos, reconhecido e admirado por uma carreira brilhante, ligando para um crítico 50 anos mais jovem. Ele não se apresentou como o Nelson do Cinema Novo, como o imortal que adaptou clássicos da literatura brasileira ou como o cineasta de “Rio Zona Norte” (1957) e “Como era gostoso o meu francês” (1971).
Era apenas o Nelson, um avô que gostava de se sentar na varanda de seu apartamento no Largo dos Leões, no bairro do Humaitá, para tomar uma cachaça — nos últimos anos, mudou para saquê —, servir um nhoque que ele próprio cozinhava e trocar uma prosa.
É aquele Nelson, o avô da minha amiga Mila, e também de Thalita, Bruno, Carolina e Gabriel, quem será velado hoje, na Academia Brasileira de Letras (ABL), a partir das 9h (o corpo será enterrado às 16h no cemitério São João Batista). Ele foi eleito imortal em 2006, na cadeira número 7, cujo patrono é Castro Alves, o poeta da resistência, o poeta do povo. Foi o assento apropriado: Nelson, com seu cinema, também foi um poeta do povo.
Paulistano, formado em Direito na USP, ele foi o cineasta que retratou os marginalizados, os excluídos, os retirantes. Foi o diretor de “Rio, 40 graus” (1955), filmando a favela ao som de Zé Ketti muito antes de alguém inventar o horroroso termo “favela movie”. O neorrealista “Rio, 40 graus” nasceu da admiração que Nelson desenvolvera pelos filmes dirigidos por Roberto Rossellini e pelos roteiros escritos por Cesare Zavattini. A Vera Cruz fora fechada em 1954, e a Atlântida se aproximava do fim. A proposta de Nelson, ao narrar a história de meninos pretos e favelados que vendiam amendoim nas ruas quentes do Rio, foi fazer um novo cinema brasileiro. Pouco depois, não à toa, ele foi o montador do primeiro longa-metragem de Glauber Rocha, “Barravento” (1962). A mensagem ecoava: adeus chanchadas, bem vindo o Cinema Novo.
Nelson foi o precursor. Antes de “Rio, 40 graus”, ele já indicava a trajetória política que marcaria sua carreira. Foi filiado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) e, em 1950, fez o curta “Juventude”, sobre trabalhadores de São Paulo. No ano seguinte, escreveu na antiga revista “Fundamentos” que era preciso criar uma cinematografia que reproduzisse “na tela a vida, as histórias, as lutas, as aspirações de nossa gente”.
Ao longo das décadas, o cinema de Nelson manteve-se fiel àquela regra. E não era preciso roteiro para que desse certo, era preciso apenas observar o Brasil. O improviso era comum em seus filmes, como da vez que rodou “Mandacaru vermelho” (1961) na Bahia quando se preparava para filmar “Vidas secas” (1963), mas foi impedido pela chuva.
Pouco depois, desta vez em Alagoas, onde a história original foi concebida, “Vidas secas”, o livro de Graciliano Ramos, virou um filme em preto e branco, com fotografia contrastada e a câmera bem próxima da miséria do protagonista Fabiano e de sua família de retirantes. O cinema, sim o cinema, expunha as dores do brasileiro.
Seu olhar para o país seguiu presente num filme experimental como “Fome de amor” (1968), uma crítica ao isolamento de intelectuais de esquerda; ou numa comédia como “Azyllo muito louco” (1970), obra inspirada em “O alienista”, de Machado de Assis, que ironizou o dito progresso da ditadura militar. Nelson buscou em Jorge Amado um campo para tratar da miscigenação brasileira em “Tenda dos milagres” (1977); e retornou a Graciliano Ramos para abordar o período da redemocratização com o premiadíssimo “Memórias do cárcere” (1984).
Quando o cinema brasileiro teve sua Retomada, no início dos anos 1990, ele se manteve presente e dirigiu “A terceira margem do Rio” (1994), a partir de Guimarães Rosa. Fora dos sets, foi um dos articuladores para a criação da Lei do Audiovisual, que permitiu que a produção retomasse seu curso abalado pelos anos Collor.
Se hoje o Brasil faz mais de cem filmes por ano, Nelson Pereira dos Santos, morto anteontem aos 89 anos, merece todos os agradecimentos. Nelson deixou, ainda, dois roteiros prontos, ambos sobre a cultura nacional que tanto lutou para preservar: um sobre o imperador Pedro II e outro sobre o poeta Castro Alves, o patrono da tal cadeira 7 da ABL.
É lá, na Academia Brasileira de Letras, que se dará a despedida de Nelson. Ele não devia acreditar em destino, mas é incrível a coincidência de que seu velório esteja marcado para um 23 de abril, Dia de São Jorge, o Ogum da mitologia iorubá. Em 1974, Nelson lançou “O amuleto de Ogum”, no qual o santo protegia o protagonista Gabriel, interpretado por Ney Santanna, seu filho. Exibido no Festival de Cannes, “O amuleto...” tinha trilha sonora de Jards Macalé e terminava com a música “Revendo amigos” .
A letra diz: “Eu vou, eu mato, eu morro, eu volto para curtir”.
Nelson, definitivamente, sempre curtiu.
Houve uma vez, não faz muito tempo, em que o bloco de carnaval Me Beija que sou Cineasta presenciou uma fantasia que teoricamente apenas cinco pessoas no mundo poderiam usar. Dizia a camisa, usada por Bruno: “Me beija que eu sou neto do Nelson Pereira dos Santos”.
Com sua morte, o cinema brasileiro não perdeu um diretor. Apenas ganhou uma fantasia, muitas lembranças e um avô.
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