Com participação de artistas e religiosos, manifestação ficou conhecida como Passeata dos 100 mil
Naief Haddad | Folha de S. Paulo
26 DE JUNHO DE 1968 E SÃO PAULO - Líderes estudantis comandaram no Rio de Janeiro a maior manifestação contra a ditadura militar desde que o regime foi implantado, em 1º de abril de 1964.
Os protestos, que se estenderam pela tarde desta quarta (26), reuniram dezenas de milhares de pessoas1, que ocuparam grande parte da avenida Rio Branco e de outras ruas do centro da cidade.
Além dos estudantes universitários e secundaristas, a manifestação pacífica na Guanabara2 teve adesão de professores, artistas, intelectuais, representantes da Igreja Católica, entre outros setores.
A passeata ganhou força como resposta à repressão policial aos protestos estudantis das últimas semanas.
No último dia 21, na Sexta-feira Sangrenta, como a data vem sendo chamada, o centro do Rio virou terreno de batalha. Mais de mil pessoas foram detidas pela polícia, e pelo menos cem foram atendidas pelos hospitais da cidade —tinham sido baleadas ou feridas por cassetetes, pedras, murros e chutes.
Durante os confrontos, um policial foi morto após ser atingido por objeto na cabeça.
A manifestação deste 26 de junho também ecoou episódio de três meses atrás. No dia 28 de março, o estudante Edson Luís, 18, foi morto com um tiro no peito pela Polícia Militar da Guanabara.
A repressão a cargo da tropa de choque ocorreu durante protesto dos secundaristas no restaurante estudantil Calabouço, no centro do Rio, para reivindicar comida de melhor qualidade e mais higiene.
Faixas que lembravam Edson Luís e outras com dizeres como “Abaixo a ditadura” eram vistas por volta de meio-dia desta quarta na concentração na Cinelândia.
Vladimir Palmeira |3|, principal líder estudantil da cidade atualmente, foi a primeiro a falar para a multidão.
“Os estudantes mostraram que não são cordeiros, e o seu movimento adquiriu força e consistência. Mas não nos iludamos”, disse Palmeira, 23, presidente da União Metropolitana dos Estudantes (UME).
“Como é que um governo que sempre nos reprimiu, sempre nos bateu permite agora esta manifestação? Está na cara: a gente sabe que, a longo prazo, a violência vai ser usada novamente, nós vamos ser reprimidos porque isso faz parte de um sistema que a gente conhece. E por conhecê-lo bem, queremos derrubá-lo”, continuou Palmeira.
Na segunda (24), o presidente Artur da Costa e Silva, havia avisado o governador da Guanabara, Negrão de Lima, que autorizava a manifestação. O governo federal queria evitar o desgaste de uma nova Sexta-feira Sangrenta.
No dia seguinte, em telegrama ao governador, Costa e Silva fazia o alerta: “Não permitirei agitações estéreis e dirigidas pelos órgãos internacionais contra a tranquilidade da família brasileira, consoante compromissos da Revolução de 31 de março de 1964”.
Os militares acreditavam que terroristas poderiam se infiltrar na multidão.
Outros representantes da sociedade civil discursaram depois de Palmeira. Um deles foi o padre João Batista Ferreira, escolhido como o porta-voz do clero.
Enquanto ele falava, seus colegas seguravam um cartaz: “Calar a mocidade é violentar as nossas consciências - padres e religiosos”.
Os discursos só eram interrompidos pelo barulho dos aviões da FAB (Força Aérea Brasileira), que sobrevoavam a região central do Rio.
Sob sol forte e ao som do Hino Nacional, a multidão começou a deixar a Cinelândia pouco antes das 14h e seguiu rumo à avenida Rio Branco.
Do alto dos prédios, funcionários dos escritórios expressavam apoio ao protesto com chuvas de papel picado.
A insatisfação com o regime dos generais prevalecia nas faixas e nas palavras de ordem, mas cada grupo também tinha suas reivindicações, o que ficou evidente ao longo da passagem pela Rio Branco.
Sob a liderança de jovens como Palmeira, Luís Travassos, presidente da UNE (União Nacional dos Estudantes) e Franklin Martins, presidente do Diretório Central dos Estudantes da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), os estudantes também pediam mais verbas para o ensino público.
As mães dos estudantes gritavam pela liberdade dos filhos que tinham sido presos nos protestos ocorridos nas semanas anteriores.
Os professores, por sua vez, reivindicavam mais liberdade para o exercício da profissão.
A passeata também chamou a atenção pela grande participação de artistas.
Da turma da música, havia nomes como Nana Caymmi, Nara Leão, Caetano Veloso, Chico Buarque, Edu Lobo, Gilberto Gil, Milton Nascimento. Paulinho da Viola, 25, levava o cartaz: “Músicos querem liberdade de expressão”.
Eles reclamavam da censura, assim como os atores e diretores de teatro e cinema. As jovens atrizes Eva Todor, Eva Wilma, Leila Diniz, Odete Lara, Norma Bengell e Tônia Carrero andaram de braços dados pela Rio Branco. Clarice Lispector e Ferreira Gullar estavam entre os expoentes da literatura que aderiram à causa.
Até a torcida do time do América tinha seus representantes —o campo do clube havia sido invadido por policiais dias antes da passeata.
Ao longo do trajeto, os organizadores promoviam comícios-relâmpago e pichavam no asfalto frases contra a ditadura militar.
O governo estadual estava preparado para tumultos. Antes da manifestação, o general Luís França, secretário de segurança da Guanabara, havia anunciado que 10 mil homens estavam prontos para entrar em ação em caso de baderna.
Não houve, contudo, incidentes relevantes. Infiltrados na aglomeração, dois agentes do Dops (Departamento de Ordem Política e Social) foram identificados e receberam ameaças de linchamento. Mas foram rapidamente retirados da passeata.
No final da tarde, depois da passagem pela Candelária, Vladimir Palmeira anunciou o encerramento da manifestação. Para arrematar os protestos, foi queimada uma bandeira dos Estados Unidos. Os jovens cariocas reagiam ao imperialismo.
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