- O Globo
Chefiada por um aliado de Putin, a Chechênia vive uma pequena abertura graças ao Mundial
Os chechenos são simpáticos e bem-humorados, mas há controle policial até na montanha
Escrevo num dos apertados assentos do avião da Aeroflot, rumo a São Petersburgo. Minha passagem pela Chechênia foi curta. Não sei se pelo cansaço, senti-me um pouco desorientado no princípio. Os franceses chamam isso de dépaysement, mas numa linguagem popular, é estar perdidão.
Você sai direto para o saguão do pequeno aeroporto. As portas se fecham atrás de você. Não há esteira de bagagem. E as portas não se abrem mais. Uma senhora me fez um sinal de que estariam ali dentro, mas só depois de algum tempo é possível recolhê-las. Ao sair do aeroporto, vê-se um prédio que parece uma mesquita. A entrar no hotel e passar diante da tevê, ela liga automaticamente e aparece um jovem lendo o Corão.
Cheguei no final do Ramadã. Há dois dias de festas. Perguntei por um restaurante chamado Esperanto, que o Trip Advisor o recomenda. Mas todos os restaurantes estariam fechados. O jeito era comer no hotel, um prédio suntuoso com enormes pilastras e elevadores automáticos.
Dos 200 táxis de Grosny, apenas alguns funcionavam. Tive de passar por varias barreiras policiais e detetores de metal para chegar ao estádio e ao hotel The Local, suntuoso prédio construído com capital árabe para abrigar o time do Egito e o craque muçulmano Salah. A Chechênia passou por duas guerras: uma de 1994 a 1996, outra de 1999 a 2004. Nos anos 1940, Stálin deportou quase todos os chechenos por suspeita de simpatia ao nazismo. Até hoje há dúvidas quanto à veracidade dessa acusação. Os grandes atentados terroristas na Rússia foram atribuídos a chechenos. Um deles foi num teatro de Moscou, outro numa escola do interior. Centenas de mortos.
O próprio herói nacional, Ahmad Kadyrov, foi morto num atentado. Seu filho Ranzam Kadyrov assumiu o governo. Combateu a Rússia no passado, mas agora se diz fiel a Putin, afirma que o obedece sem vacilar. Ele é uma garantia para os russos não terem de enfrentar uma terceira guerra na Chechênia. A contrapartida russa é muita grana para a reconstrução do país. A Chechênia é uma interface com o mundo muçulmano. Kadyrov é amigo do príncipe herdeiro da Arábia Saudita. De um modo geral, os chechenos são simpáticos e bem-humorados, mas há controle policial até na montanha. Tive que abrir a bolsa de equipamentos muitas vezes. Ser brasileiro ajudava.
Kadyrov detesta jornalistas estrangeiros. Eles denunciam a repressão contra opositores e gays. Um líder do movimento dos direitos humanos foi preso. O movimento se chama Memorial. O motivo da prisão: a polícia alega que estava com um pouco de maconha, algo nitidamente plantado para incriminá-lo.
Nas únicas entrevistas em que abordou o tema, Kadyrov afirmou que não há gays na Chechênia: isso seria um insulto às suas famílias. Ele admite que existem gays no Ocidente. É um avanço em relação ao embaixador da Coreia do Norte em Cuba nos anos 1970.
Indagado por um militante americano sobre a questão gay, perguntou de bate-pronto o que era isso. O militante explicou no estilo da canção de Tim Maia: homem com homem, mulher com mulher.
— Isso não existe — afirmou. — É uma hipótese absurda.
Como presente de Putin, Kadyrov ganhou uma participação secundária na Copa. Ficou com a parte mais próxima do mundo muçulmano. O estádio foi construído só pra isso. Um pouco como no Brasil, depois ficará às moscas. Mas Kadyrov não é apenas um enlace com o Oriente Médio. Ele protestou também contra a repressão a muçulmanos em Myamar. É um trunfo geopolítico de Moscou.
Grosny pretende ser uma segunda Dubai, com prédios suntuosos e lojas de grife internacionais. Mas, além das lindas montanhas e das mesquitas que me pareceram o ponto alto da arquitetura na Chechênia, destacaria a música que ouvi em todos os táxis. É variada e tem um balanço interessante.
Num lugar com uma atmosfera tão policialesca, a música pelo menos relaxa. Gravei alguma coisa dela na câmera de vídeo. Talvez eu volte lá um dia.
A Chechênia que lemos na imprensa internacional dá medo. Mas, por enquanto, não há pressão sobre jornalistas, por causa da Copa.
Quem sabe depois dela essa discreta abertura sobrevive?
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