As instituições parecem ter força para impedir eventual ação antidemocrática do futuro governo, diz o historiador Murilo de Carvalho. "Agir conforme o que foi dito na campanha seria suicida"
'Agir de acordo com o que foi dito na campanha seria burro e suicida'
Sergio Lamucci | Valor Econômico
SÃO PAULO - A eleição de Jair Bolsonaro (PSL) representa "algum risco" para a democracia brasileira, mas as instituições parecem ter força suficiente para impedir a adoção de medidas antidemocráticas pelo presidente eleito, avalia o historiador José Murilo de Carvalho. Professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Carvalho diz que, "no próprio discurso feito após a vitória, o eleito já adotou retórica muito menos radical e ameaçadora de valores democráticos do que a usada na campanha". Para o historiador, "agir de acordo com o que foi dito na campanha seria burro e suicida. Seria supor que as Forças Armadas estariam dispostas a entrar numa aventura que não lhes interessa."
Ao falar das instituições, Carvalho diz imaginar que elas serão "barreiras eficazes" contra eventuais "desatinos" presidenciais. "Temos o Congresso onde ele não terá maioria, temos o Judiciário que vem funcionando satisfatoriamente no que se refere à defesa da constitucionalidade de medidas do Executivo e do Congresso, temos o Ministério Público, a imprensa, as organizações da sociedade civil e as próprias redes sociais. Por fim, há a rua."
Ao responder sobre que espera de um governo Bolsonaro, Carvalho considera "muito provável que haja medidas que afetem negativamente a política externa, o meio ambiente, a liberdade de pensamento, os direitos humanos, a proteção de minorias, contra as quais será necessário atuar com muita determinação". Apesar disso, diz não ser "apocalíptico, como muitos outros analistas", por acreditar que haverá "condições de evitar, ou pelo menos reduzir, os danos dentro da legalidade e, ao final, fortalecer o sistema democrático que, segundo pesquisa, ainda é o preferido pela maioria dos brasileiros".
Carvalho afirma que houve uma eleição democrática, em que "a voz da maioria" se fez ouvir. "Portanto, o vencedor tem o direito de governar. Cabe à minoria derrotada dos que não concordam com as ideias e valores dos vencedores, como é o meu caso, o direito, diria mesmo o dever cívico, de fazer todo tipo de oposição que a lei permitir".
Membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), Carvalho é um dos maiores historiadores do país, autor de obras consagradas como "A Formação das Almas", "Os Bestializados", "Teatro de Sombras" e "Forças Armadas e Política no Brasil". Na conversa com o Valor, feita por meio de uma intensa troca de e-mails, ele também fala do quadro difícil que petistas e tucanos enfrentarão daqui para frente, discutindo os motivos que colocaram um fim à polarização das eleições presidenciais entre PT e PSDB.
A seguir, os principais trechos da entrevista com Carvalho, mestre e doutor em ciência política pela Universidade de Stanford, nos EUA.
Valor: Bolsonaro foi eleito com quase 58 milhões de votos, concorrendo por um partido pequeno, que praticamente não tinha tempo de televisão. Que fatores explicam o sucesso da estratégia de Bolsonaro?
José Murilo de Carvalho: Do ponto de vista político, o grande mal-estar que desde 2013 atingia boa parte da população em relação à política e aos políticos, decorrente da crise econômica e das práticas de corrupção. Em particular, o repúdio ao PT disseminado em boa parte da população. É seguro dizer que, no segundo turno, muitos eleitores votaram contra, não a favor, isto é, contra Bolsonaro e contra o PT. Do ponto de vista técnico, a decisão, inédita no Brasil, de centrar a campanha nas redes sociais, recurso barato e eficaz. Adeus, marqueteiros tradicionais.
Valor: A eleição de Bolsonaro guarda semelhança com alguma outra eleição da história do país?
Carvalho: Como tática de campanha, não. Politicamente, o ataque de candidatos de fora do establishment partidário à corrupção generalizada deu-se com Jânio Quadros, que usava uma vassoura como símbolo da campanha, e Fernando Collor, com seu mote de caça aos marajás.
• "Apesar de suas idiossincrasias, Ciro talvez tenha melhores condições para liderar a oposição ao novo governo"
Valor: Na oitava eleição presidencial após a redemocratização, três décadas depois da promulgação da Constituição de 1988, o Brasil elegeu um capitão da reserva que elogia o período da ditadura. Qual o significado desta eleição?
Carvalho: Uma grande novidade desta eleição é que o golpe civil-militar de 1964 e a ditadura militar de 1968 a 1985 foram colocados no centro do debate. Isto significa que esse tema ainda não virou história, é ainda memória viva. Fiquei perplexo ao ler os resultados de uma pesquisa publicada na "Folha" mostrando que pessoas mais velhas, que viram 1964 e viveram a ditadura, tendem a ter visão mais positiva dela do que pessoas mais novas. Mas, apesar do saudosismo de alguns, seria exagero imaginar que se trata de projeto de retorno à ditadura.
Valor: A vitória de Bolsonaro representa um risco para a democracia?
Carvalho: Algum risco. Mas no discurso feito após a vitória o eleito já adotou retórica muito menos radical e ameaçadora de valores democráticos do que a usada na campanha. Pareceu o "paz e amor" de Lula, só que dirigido ao público oposto ao que Lula visou. Agir de acordo com o que foi dito na campanha seria burro e suicida. Seria supor que as Forças Armadas estariam dispostas a entrar numa aventura que não lhes interessa.
Valor: As instituições brasileiras têm força suficiente para impedir a adoção de eventuais medidas antidemocráticas pelo presidente?
Carvalho: Creio que sim. Temos o Congresso onde ele não terá maioria, temos o Judiciário que vem funcionando satisfatoriamente no que se refere à defesa da constitucionalidade de medidas do Executivo e do Congresso, temos o Ministério Público, a imprensa, as organizações da sociedade civil e as próprias redes sociais. Por fim, há a rua. Imagino que serão barreiras eficazes contra desatinos presidenciais.
Valor: O vice de Bolsonaro é um general da reserva, e o deputado já indicou que haverá outros militares em cargos importantes no governo. A presença de militares na cena política é motivo de preocupação?
Carvalho: Os militares vinham-se mantendo à margem da política desde a redemocratização. Ultimamente é que o comandante do Exército e o general que compõe a chapa vencedora começaram a fazer declarações políticas que lembravam os anos anteriores a 1964. Mas é preciso notar que os comandantes da Marinha e da Aeronáutica se mantiveram em silêncio. A ditadura custou muito caro para a imagem das Forças Armadas, sobretudo entre setores da classe média (intelectuais, artistas, jornalistas) para que elas se arrisquem a desrespeitar a Constituição. A presença de generais no governo poderá representar estilos de ação e ênfases diferentes, mas não necessariamente ilegais.
Valor: De 1994 em diante, todas as eleições presidenciais tinham sido marcadas pela polarização entre PT e PSDB. Por que essa polarização ficou para trás desta vez?
Carvalho: Os dois partidos desgastaram-se. Após um bom desempenho nos dois primeiros mandatos, ajudado pelo cenário internacional favorável, o PT levou o país à recessão e deixou o legado da Lava-Jato. Sua arrogância não lhe permitiu fazer autocrítica e se repensar. Virou um partido do Nordeste. O PSDB perdeu também sua identidade e viu parte de suas lideranças envolvidas em denúncias de corrupção. Em 2013, as ruas já tinham alertado para o desgaste da política e dos políticos hegemônicos, mas em vão.
Valor: Candidaturas mais ao centro tiveram um desempenho muito ruim na eleição, especialmente as de Geraldo Alckmin e de Marina Silva. Por que o centro se saiu tão mal nas urnas desta vez?
Carvalho: O ambiente era de uma nova polarização. Não sobrou lugar para o centro. Mas, no Brasil, não se governa sem ele. Pesquisas do Ibope de março de 1964 previam vitória de JK [Juscelino Kubitschek], de centro, no ano seguinte. A polarização não o permitiu. Uma simples aliança do PT com Ciro Gomes, candidato de centro, com este como cabeça de chapa, poderia ter evitado a vitória de Bolsonaro.
Valor: João Doria sai das eleições provavelmente como o principal nome do PSDB, dado o mau desempenho de Alckmin, o naufrágio de Aécio Neves e o ocaso de outras figuras tradicionais do partido. Que futuro, se algum, o sr. vê para o PSDB?
Carvalho: Não vejo futuro. Terá que sair de cena ou se reinventar, com novas lideranças e novas propostas políticas. Doria não representa a proposta inicial social-democrata do PSDB original.
Valor: Lula levou o seu candidato ao segundo turno, mas o petismo sofreu uma derrota expressiva. Qual será o papel de Lula e do lulismo daqui para frente?
Carvalho: Lula enfrenta situação difícil. Terá que fazer o que nunca quis fazer: dar lugar a um sucessor que tenha liberdade de ação, em vez dos postes que tem usado. Ao mesmo tempo, seu partido precisa reduzir o grau de dependência em relação a seu criador e também se repensar. Expulso do Sudeste, Sul, Centro-Oeste e parte do Norte, não terá futuro nacional.
• "Sem alianças e concessões, não é possível governar num regime democrático. Jânio e Collor que o digam"
Valor: O antipetismo teve um papel determinante para a eleição de Bolsonaro. Quais os principais erros do PT que levaram a essa rejeição tão forte ao partido?
Carvalho: Erros de política econômica, envolvimento em malfeitos, arrogância, agressividade. Além disso, houve o desgaste normal de partidos que ficam muito tempo no poder e não percebem mudanças na sociedade, às vezes provocadas por sua própria política.
Valor: Fernando Haddad - ou algum outro nome do PT - poderá liderar a esquerda nos próximos anos? Ou esse papel caberá a alguém como Ciro Gomes?
Carvalho: O PT nunca foi bom de alianças, nunca quis abrir mão da hegemonia, como foi o caso agora com o PDT de Ciro Gomes. Este, apesar de suas idiossincrasias, talvez tenha melhores condições para liderar a oposição ao novo governo.
Valor: Haddad e o PT tentaram formar o que se chamou de uma frente democrática no segundo turno, mas não conseguiu o apoio explícito de figuras como Fernando Henrique Cardoso e nem mesmo Ciro Gomes, ainda que os dois tenham feito declarações contra Bolsonaro. O que explica o insucesso da iniciativa?
Carvalho: Como dito em resposta acima, à falta de confiança no PT como aliado. O partido nunca abriu mão de uma posição hegemônica em suas alianças, seja com partidos menores de esquerda, seja com grandes partidos de centro. Os vices de outros partidos nos governos petistas eram figuras decorativas. Creio que a recusa de aliança não foi a Haddad, foi ao PT, onde ele é quase um pássaro fora do ninho. Esta mesma recusa vai dificultar uma aliança dos partidos oposicionistas.
Valor: Bolsonaro tem prometido fazer um governo sem concessões aos partidos, evitando o toma-lá-dá-cá com os parlamentares. É possível governar assim com um Congresso que continua extremamente fragmentado, tentando mudar a lógica do presidencialismo de coalizão?
Carvalho: Sem concessões e alianças não é possível governar num regime democrático. Os exemplos de Jânio Quadros e Collor que o digam. Alianças talvez pudessem ser feitas com bancadas em vez de partidos, mas, mesmo assim, não se evitaria o toma-lá-dá-cá. E, mesmo com a redução do número de partidos, seu número ainda é grande e será inevitável fazer coalizões, mesmo que ad hoc. O que está errado e que contribuiu para descrédito de políticos, de partidos e da própria política foram as alianças compradas por meios criminosos.
Valor: Bolsonaro tem um histórico estatizante e corporativista como deputado, mas adotou um discurso liberal na economia na campanha. Qual dos dois tende a predominar no governo, o estatizante ou o liberal?
Carvalho: Se você souber, me conte. A dificuldade da previsão já fica clara com a escolha feita pelo presidente estatizante de um superministro da área econômica que é radicalmente pró mercado.
Valor: O que o senhor espera de um governo Bolsonaro?
Carvalho: Democracia como sistema de governo tem dois princípios fundamentais: o direito que a maioria tem de governar e o direito que a minoria tem de se opor. Houve uma eleição democrática em que a voz da maioria se fez ouvir e não seria democrático dizer que o povo não sabe votar. Portanto, o vencedor tem o direito de governar. Cabe à minoria derrotada dos que não concordam com as ideias e valores dos vencedores, como é o meu caso, o direito, diria mesmo o dever cívico, de fazer todo tipo de oposição que a lei permitir. É muito provável que haja medidas que afetem negativamente a política externa, o meio ambiente, a liberdade de pensamento, os direitos humanos, a proteção de minorias, contra as quais será necessário atuar com muita determinação. Mas não sou apocalíptico, como muitos outros analistas. Ainda acho que teremos condições de evitar, ou pelo menos reduzir, os danos dentro da legalidade e, ao final, fortalecer o sistema democrático que, segundo pesquisa, ainda é o preferido pela maioria dos brasileiros.
Valor: Em que medida ataques à imprensa, declarações contra minorias e a afirmação de que pretende "varrer do mapa os bandidos vermelhos" indicam o que poderá ser a presidência de Bolsonaro?
Carvalho: Há retórica de campanha e há política de governo. Se vão coincidir ou não, só o tempo dirá.
Valor: Qual o significado da ida do juiz Sergio Moro para o governo Bolsonaro, para ocupar um Ministério da Justiça fortalecido e ampliado?
Carvalho: A ida de Sergio Moro para um Ministério da Justiça reforçado manda mensagens contraditórias. Inspirada na decisão do juiz italiano Giovanni Falcone da Operação Mãos Limpas, pode reforçar o combate à corrupção confirmando a prisão após condenação em segunda instância e reduzindo os beneficiários do foro especial. Tal política, por outro lado, pode gerar constrangimentos entre aliados, ou potenciais aliados, que estejam na mira da justiça. Como juiz, pode ser um anteparo contra iniciativas inconstitucionais que o presidente possa eventualmente tentar, o que o colocará em choque com seu chefe. A esta altura, só podemos desejar que ele não tenha o destino de Falcone.
Nenhum comentário:
Postar um comentário