- Eu &Fim de Semana | Valor Econômico
Quando Luiz Inácio foi eleito presidente da República, em 2002, vencendo José Serra, o fato provavelmente mais importante da eleição foi o de que os dois candidatos eram provenientes do subúrbio de São Paulo. Representavam um novo sujeito da política brasileira.
Ao chegar a São Paulo, vindo de Pernambuco, de uma família de pequenos agricultores, Luiz Inácio foi morar na Vila Carioca, próxima de São Caetano, e foi trabalhar em fábrica. José Serra, por sua vez, é de uma família de imigrantes italianos, originários da Calábria pobre, nascido na Mooca, do outro lado do rio Tamanduateí. O pai tinha uma banca no Mercado Municipal de São Paulo. Da várzea em que morava, Luiz Inácio podia ver a Mooca de Serra, do lado de lá. E vice-versa. Nos dois lados, finalmente, a classe média originária da revolução decorrente da abolição da escravatura desbancava as oligarquias e chegava ao poder.
Agora, estamos vivendo outro momento da história política que, de vários modos, representa a continuação da crise de alternativas que se expressou na vitória de Lula. Com diferenças. O novo presidente eleito, Jair Messias, vem do outro ramo da formação das classes populares em São Paulo, o dos imigrantes italianos que se tornaram brasileiros nos tempos do café. Família originária do Vêneto agrícola e pobre que chegou ao Brasil em 1888, no mesmo ano da abolição da escravatura. Veio viver aqui um momento crucial do nascimento do Brasil moderno, em atividades econômicas modestas, como milhares de outros imigrantes, sobretudo em São Paulo.
Essas possibilidades debatem-se com o que é próprio do movimento do pêndulo oculto que governa o processo político brasileiro. A ele já se referiram Victor Nunes Leal, Raimundo Faoro, Nestor Duarte. É o movimento entre descentralização política - e o protagonismo histórico do município, sob a aparência formal de democracia - e a centralização política, se necessário com ditadura.
No primeiro caso, o localismo pulveriza os recursos públicos em detrimento das necessidades nacionais, que são outras e específicas. O que exclui as grandes cidades. A centralização política busca a reunião dos meios econômicos para o atendimento de necessidades e funções da nação, enquanto todo, despesas sem visibilidade para o conjunto do eleitorado cuja identidade é local.
Com o programa setorizado do Bolsa Família, Lula conseguiu romper a força política do municipalismo brasileiro, mas sua política de coalizão não conseguiu romper-lhe o poder hegemônico no Congresso Nacional.
Nestas eleições, Jair Messias conseguiu, largamente, angariar os votos de província e os votos municipais, mas em nome de uma bandeira que implica não só numa reforma política, mas numa reforma do Estado. Contrárias ambas à tese da força política do Brasil fracionado, tanto pelas oligarquias quanto pelo próprio PT.
Na estrutura que está dando à composição de seu governo, com base nas grandes frentes de interesses e a minimização dos partidos e do que representam, o Estado brasileiro terá outra configuração. O governo não poderá ser um governo de facções e nem mesmo de acordos partidários. Constituirá um governo de superministros com superpoderes e um presidente-juiz que maneja o leme do barco.
Jair Messias pensa o poder como o contrário da concepção de poder de Luiz Inácio. Luiz Inácio pensou a fragilização do Estado para fortalecer seu partido e, sobretudo, sua pessoa. Jair Messias terá que refortalecer o Estado sem apelar para a estatização já que seu compromisso é com a economia privada e com o lucro. Terá problemas. Nem tudo que é bom e necessário para o país é lucrativo. Sem lucro, o capitalismo não sobrevive. Só com lucro, tampouco.
Os grandes valores sociais que asseguraram o equilíbrio da sociedade capitalista foram aqueles originários do bom senso pré-capitalista, quando o homem ainda não era o homem-coisa, que estão no centro das propostas atuais. O que é bom no capitalismo não é propriamente capitalista. Ao mesmo tempo, imensas multidões neste país estão fora da lógica da lucratividade. Estão cada vez mais fora das prioridades do Estado.
Na verdade, esse número tenderá a crescer pelo que sugerem as informações sobre as medidas que vão vazando do elenco de meias-informações que dizem o que nos espera. Há algumas décadas a sociedade brasileira vem se tornando uma sociedade residual, do que sobra de uma economia regulada pela produtividade crescente sem emprego crescente compensatório do desemprego que dela decorre.
As enormes brechas de vazamento das tensões sociais continuarão abertas. As novas lideranças dos novos movimentos sociais já não saberão lidar com o novo presente. Só com seu obsoleto passado...
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José de Souza Martins é sociólogo. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “A Sociologia como Aventura” (Contexto).
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