- Época
Em poucos dias, houve depreciação do capital político do capitão, o que inevitavelmente afetará o andamento de sua agenda.
Da montanha ao Planalto Central “Para que serviria a política se não desse a todos a oportunidade de fazer concessões de cunho moral?” Eis uma bela citação entre tantas outras belas citações da obra de Thomas Mann, cujo cenário é Davos. Todo ano se realiza reunião do Fórum Econômico Mundial na cidade suíça e todo ano alguém cita Thomas Mann ou A montanha mágica. Neste ano, entretanto, a obra tem um significado mais do que especial.
A trama é conhecida: em um sanatório para tuberculosos, discutem-se incessantemente valores seculares e humanistas, a defesa do totalitarismo, a configuração da Europa às vésperas da Primeira Guerra Mundial — essa última parte está sutilmente retratada na obra. Às vésperas da Primeira Guerra Mundial , havia no mundo fora da montanha conflito deflagrado entre o humanismo secular, com seu DNA iluminista aberto às ideias, e o totalitarismo brutal, antítese do secularismo e da abertura.
No mundo atual, há um conflito deflagrado entre os nacionalistas defensores do fechamento das fronteiras para bens, serviços e pessoas e os adeptos da globalização, defensores da abertura e avessos à tribalização. A ausência de diversos líderes mundiais em Davos sublinha os conflitos.
Engalfinhados com seus problemas internos, todos provenientes da luta entre nacionalismos variados e a preservação de valores que predominaram após a Segunda Guerra Mundial — a integração global, a abertura para os imigrantes, o repúdio ao autoritarismo —, não compareceram Donald Trump, Theresa May, Emmanuel Macron. Também não foram Narendra Modi e Xi Jinping. Em todos esses casos, de um modo ou de outro, a política tem deixado de servir ao papel a ela atribuído por protagonistas de Thomas Mann. No Brasil não é diferente.
Para a consternação de humanistas seculares na montanha mágica, Bolsonaro — um dos líderes mais aguardados no palco vazio de Davos — encerrou seu curto discurso alterando o lema de campanha com outra exortação ao Divino: “Deus acima de tudo!”. Talvez essa tenha sido a frase de maior conteúdo que proferiu durante sua brevíssima passagem. O resto foi mistureba de referências para agradar à audiência — como as promessas de abrir a economia brasileira e cuidar do meio ambiente —, frases soltas sobre reformas econômicas, combate à corrupção e à violência — o “Novo Brasil” que o presidente diz ter inaugurado — e outros farrapos mais. No fim, não agradou aos investidores internacionais e deixou meio perplexos os empresários e os investidores brasileiros, a única parte da base eleitoral de Bolsonaro que realmente se interessa pelo que se passa uma vez por ano na montanha.
O restante de seus eleitores deve estar perplexo mesmo com os escândalos crescentes que surgem no entorno de seu filho senador. Por enquanto, são notícias, alegações e ligações perigosas. Contudo, o barulho e a gravidade do que se alega já são suficientes para pôr Bolsonaro em posição extremamente delicada, senão frágil.
De volta da montanha ao Planalto Central, terá ele de colocar em andamento a reforma da Previdência, cujos detalhes não foram anunciados em Davos conforme prometera — ao menos não de forma pública. Cercado pelos problemas do filho senador e acuado pela crescente influência de seus generais, é difícil ver como sairá do papel a reforma de que precisamos para resolver as mazelas fiscais. Sem falar no drama ainda mais complicado da situação financeira dos estados, que terá de ser equacionada rapidamente para que Bolsonaro não corra o risco adicional de ver sua popularidade cair com a inevitável escalada da violência caso não seja encontrada solução para as finanças regionais.
Ou seja, com menos de um mês de governo, Bolsonaro já enfrenta uma possível crise política que poderá comprometer seriamente a agenda econômica. O enredo seria muito parecido com o dos governos que o antecederam, não tivesse Bolsonaro se atrelado tanto à agenda anticorrupção e de combate à violência. Afinal, as notícias no entorno de seu filho senador estão relacionadas tanto com possíveis práticas corruptas quanto com esquadrões de morte nas favelas cariocas.
Para descer tão rápido da montanha mágica ao Planalto Central, só mesmo com uma pitada de Legião Urbana:
Nas favelas, no Senado/
Sujeira pra todo lado/
Ninguém respeita a Constituição/
Mas todos acreditam no futuro da nação
*Monica De Bolle é diretora de estudos latino-americanos e mercados emergentes da Johns Hopkins University e pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics
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