Os problemas globais são cada vez mais integrados, mas as respostas se tornam mais fragmentadas e, por isso, insuficientes. Este foi o ponto de partida do secretário-geral das Nações Unidas, o português António Guterres, para a mais forte defesa do multilateralismo apresentada nesta semana, em Davos, na reunião do Fórum Econômico Mundial. O maior adversário do multilateralismo é também o governante da maior potência global, o presidente americano, Donald Trump, modelo e inspiração de Jair Bolsonaro, presidente da maior economia latino-americana. Sem polemizar ou distribuir acusações, Guterres se dedicou a mostrar os grandes desafios e a explicar por que as ações dos governos são muito menos eficientes do que poderiam ser.
É fácil ver na economia como os desafios são interconectados. Problemas como tensões comerciais e riscos associados ao Brexit, por exemplo, minam a confiança de empresários, investidores e financiadores, afetam os preços de ativos de vários tipos e ainda se refletem no crédito e nas decisões de negócios. Mas as questões são em geral tratadas separadamente e com insuficiente articulação internacional.
O mesmo apelo em favor da cooperação, da articulação e da ação sistêmica havia sido formulado em Davos pela diretora-gerente do Fundo Monetário Internacional (FMI), Christine Lagarde, e pela economista-chefe da instituição, Gita Gopinath. Esta foi especialmente clara e didática ao mostrar, numa entrevista coletiva, a interconexão dos vários tipos de riscos no caminho da economia global. Guterres empregou o mesmo arsenal de exemplos e de argumentos, mas desenhando um quadro muito mais dramático.
São claras as conexões entre a multiplicação de conflitos políticos e o agravamento de riscos econômicos e de seus piores efeitos, como a miséria. Além disso, o aumento dos conflitos num mundo multipolar pode levar a desastres extremos, quando inexiste qualquer tipo de coordenação. Havia multipolaridade na Europa, no começo do século passado, e sua consequência trágica mais próxima foi a 1.ª Guerra Mundial, lembrou Guterres.
Um mundo mais coordenado e preparado para respostas mais articuladas teria controlado com maior eficiência, segundo o secretário-geral da ONU, os efeitos indesejáveis da globalização, como o aumento da desigualdade entre pessoas, países e regiões. Esses efeitos tiveram desdobramentos sociais e políticos. Ampliou-se a desconfiança em relação às instituições, aos governos e também os aspectos positivos da globalização passaram a ser rejeitados. Novos desafios foram impostos aos governos. Não haverá resposta eficiente, no entanto, sem cooperação e sem articulação multilateral, sustentou Guterres. É indispensável, avançou, criar um multilateralismo inclusivo e para isso será necessário ir além das ações isoladas dos próprios organismos multilaterais – FMI e Organização Mundial do Comércio (OMC) são exemplos – tais como hoje operam.
Os apelos de Guterres, no entanto, chegam num momento de enormes desafios para qualquer tipo genuíno de multilateralismo. Fala-se de reforma da OMC, mas seria ingenuidade entender essa discussão como originária de uma real ambição de aperfeiçoamento. O debate deve-se em grande parte às pressões do governo americano contra o atual sistema de normas do comércio internacional. A posição americana tem-se traduzido em risco de paralisação de uma das atividades mais importantes da OMC, a solução de controvérsias por meio de um órgão especializado. Para impor sua vontade, o governo dos Estados Unidos chegou a entravar a nomeação de juízes para essa tarefa. Essa atitude reflete problemas muito especiais, como os conflitos com a China e a promessa eleitoral de cuidar de setores, como a siderurgia, pouco eficientes e sem competitividade. O governo brasileiro, embora moldando um discurso baseado em assuntos brasileiros, como a agricultura, tem sido um seguidor da doutrina Trump também nos debates sobre a OMC.
Os ideais do multilateralismo defendidos por Guterres são importantes para um mundo eficiente, equitativo e civilizado. Não é fácil defendê-los num mundo assolado pelo nacionalismo, pelo populismo e pela indigência de visão política e diplomática.
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