- O Globo
O cinema brasileiro vive um paradoxo. Nunca tivemos tanta qualidade em nossos filmes. Ao mesmo tempo, estamos ameaçados de acabar muito em breve
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Todo mundo sabe que a cultura é o mais precioso “soft power” que um país pode ter. Um poder capaz de influenciar sem a imposição do mercado ou a violência de uma guerra. E sempre em benefício de sua própria origem. Além disso, a cultura de um país como o Brasil é hoje objeto de uma estrutura econômica cada vez mais ampla e mais sofisticada. Em 2018, enquanto o cultivo, beneficiamento e moagem de café gerava cerca de 400 milhões de reais para a Receita Federal, o arrecadado através da produção cultural chegava a 905 milhões.
Como pode então o poder boicotar ou simplesmente fechar os olhos a essa força espiritual, social e econômica? O que o poder nacional quer da cultura?
Eles não se enganam apenas na nova versão infantojuvenil da Lei de Incentivo à Cultura, ex-Rouanet, tratando a produção cultural com limites e obrigações mercadologicamente inexequíveis, como se o estímulo se destinasse a distrair escolares em férias. Como lembrou a socióloga e jornalista Ana Paula Sousa, o governo se apropria assim de velho discurso do PT, no qual a lei não deve beneficiar “artistas consagrados”. Mesmo que seja verdadeiro que 90% dos projetos propostos nunca passaram do teto estabelecido agora, os outros 10% não precisam ou não merecem ser realizados? A lei então é seletiva?
No cinema, o comportamento sombrio da Ancine nos sugere o pior. A interrupção de sua atividade de fomento, a partir de 15 de abril, como está no documento interno que os jornais publicaram, é simplesmente desastrosa. Mas parece que a paralisia é necessária “para garantir a segurança jurídica dos servidores”. É claro que funcionários públicos precisam da proteção de seus empregos, estamos juntos. Mas por que a “segurança dos servidores” é prioritária, em detrimento dos produtores que trabalham na fabricação de filmes, objeto e sujeito, razão enfim da criação da agência? Uma agência que, desvirtuada desde sua origem, é responsável, ao mesmo tempo, por fomento, regulação e fiscalização, uma espécie de poder único e absoluto na atividade. O que é inacreditável, indesejável e inviável.
Desde o ano passado, nenhuma providência foi tomada em relação aos instrumentos que sempre permitiram a existência de nossa produção em ambiente adverso. Nada foi feito em relação à regular e tradicional cota de tela anual, que não existe mais; o VOD continua ocupando nossas telinhas, sem taxação alguma (o único país do mundo nessa condição); a dobra semanal não é mais obrigatória, está entregue ao gosto e ao lucro do exibidor; o Conselho Superior de Cinema (nacional!) é formado por representantes da Motion Pictures Association of America e de empresas como a Netflix. Seria até o caso de pedirmos a nomeação de um representante dos produtores brasileiros no Conselho daquele sindicato americano (a MPAA), ou no “board” da Netflix.
As políticas públicas do audiovisual no Brasil, apesar de tudo, geraram um cinema que cresceu e é hoje reconhecido internacionalmente. No ano passado, comemoramos uma produção de 160 filmes, em parte escoada comercialmente pelo mundo afora. No próximo Festival de Cannes, neste mês de maio, quatro filmes brasileiros estarão na seleção oficial, além de outros na paralela Quinzena dos Realizadores. Mas o processo de desmonte da atividade segue se radicalizando, como se a cultura em geral e o cinema em particular fossem os “inimigos do povo”.
Agora mesmo, o novo “Vingadores”, um filme que só existe para nos impressionar por seus efeitos digitais, ocupa 80% de nossas telas, expulsando delas o filme brasileiro “De pernas pro ar 3”, que já fez quase dois milhões de espectadores, em cerca de duas semanas. Com essa invasão do novo “Vingadores”, o filme brasileiro, mesmo com todo o seu sucesso, está sendo retirado de cartaz em 300 salas, não tendo como lutar por justa e necessária permanência, porque as leis de proteção não existem mais ou simplesmente não são respeitadas. Uma das regras mais universais do capitalismo é a do combate ao abuso do poder econômico. Mas, no Brasil, pode.
Stephen McFeely, roteirista do novo “Vingadores”, diz que “o que leva pessoas ao cinema hoje são filmes com CGI (efeitos digitais)”. No fundo, o espectador desses filmes só quer mesmo passar duas horas em uma sala com ar refrigerado, se distraindo da vida ou tirando uma soneca. Resultado talvez da vasta e incisiva campanha de promoção, nossos jornais, blogs e sites acabam apoiando entusiasticamente esses filmes. Entre bonequinhos aplaudindo histericamente, só um crítico teve a coragem de escrever o que McFeely provavelmente queria, mas não podia dizer. Na “Folha de S.Paulo”, Ivan Finotti afirmava, outro dia, que o novo “Vingadores” era o “filme mais chato do ano”.
Nem este, nem outros governos anteriores a este, mesmo aqueles que produziram ou apoiaram leis que nos favoreciam, nunca fizeram um só gesto para mostrar à população o que nós e nossos filmes realmente somos: um espelho do país, de suas coisas boas e ruins, de sua diversidade, de sua cultura. O cinema brasileiro vive hoje um paradoxo sofrido. Nunca tivemos tanta qualidade em nossos filmes, vinda de diferentes formações, gerações e regiões do país; ao mesmo tempo em que estamos ameaçados de acabar muito em breve, da noite pro dia.
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