- O Estado de S. Paulo
Desafio da Previdência é unir ganho fiscal e redução de desigualdades
Em matéria de números, começa a ficar claro até onde pode ir a reforma da Previdência. Ainda que Bolsonaro, como de costume, diga que suas declarações não foram bem interpretadas e a equipe econômica mostre-se contrariada com a inconfidência do presidente, parece que o governo está mesmo preparado para “aceitar” uma reforma com “abatimento” de uns R$ 400 bilhões nas contas de ganho fiscal em dez anos. A proposta do Planalto, tal como ela desembarcou no Congresso, representa uma economia de R$ 1,23 trilhão. O aumento em relação ao R$ 1,1 trilhão em relação ao cálculo anterior seria explicado pela atualização dos dados com base na nova Lei de Diretrizes Orçamentárias e pelo adiamento da entrada em vigor das mudanças, de 2019 para 2020.
Mesmo antes de mais esse escorregão de Bolsonaro, os agentes do mercado já vinham trabalhando com números mais modestos – ou realistas, dependendo do olhar –, nas proximidades de R$ 600 bilhões a R$ 700 bilhões. E não pareciam impressionados com o “tudo ou nada” do ministro Paulo Guedes, que oficialmente não arredava pé da marca do R$ 1 trilhão. Como se, abaixo disso, o destino da economia e, por tabela, do País fosse simplesmente o caos.
Trilhão para cá, trilhão para lá, o fato é que a avaliação da proposta do Planalto para a Previdência torna-se muito pobre, se for circunscrita a números – embora eles sejam indicadores importantes da viabilidade da arrumação das contas públicas. Espera-se um debate exaustivo sobre quais serão e sobre quem recairão as mudanças. Afinal de contas, conforme Guedes tem insistido, trata-se não apenas de promover ajuste fiscal, mas de desmontar a fábrica de desigualdades que caracteriza a Previdência no Brasil. Argumento que, se não é suficiente para conquistar forte adesão à reforma, serve pelo menos para enfraquecer as resistências de alguns setores.
A grande questão, nesse ponto, é que conciliar os dois objetivos não é tarefa simples. Um artigo do economista Luiz Guilherme Schymura, publicado no blog do Ibre/FGV, dá uma boa mostra das contradições embutidas nessa combinação. Vamos destacar duas:
1) Um dos pilares da reforma, a eliminação das vantagens dos servidores, com a unificação dos regimes do setor público e privado, é quase um consenso, sob o ponto de vista social. Mas seu efeito nas contas públicas não é correspondente: os gastos com pessoal ativo e inativo do governo federal estão estabilizados em pouco mais de 4% do PIB há duas décadas, enquanto os relativos à previdência do setor privado subiram de 3,4% do PIB, em 1991, para 8,5% em 2018 – e a situação pode se tornar explosiva a longo prazo, considerando-se a junção perversa das regras atuais com o envelhecimento da população.
2) Um descompasso semelhante acontece entre a aposentadoria por idade e a por tempo de contribuição, cujos beneficiários abrigam-se, em maior parte, nas faixas de renda mais elevada. Se a justiça social recomendaria mirar a segunda modalidade, o resultado fiscal seria mais efetivo no caso da aposentadoria por idade – levando-se em conta que o número de benefícios, entre 2011 e 2017, registrou uma expansão média de respectivamente 4,65% e 3,22% ao ano.
Diante dessas diferenças, fica evidente o tamanho do desafio dos parlamentares para negociar uma reforma que permita o máximo possível de ganho fiscal com o máximo possível de redução de desigualdades. A tarefa está nas mãos dos integrantes da Comissão Especial da Câmara. A julgar pelas declarações de parlamentares da base aliada, já estão a caminho algumas alterações no texto nessa direção, como extinguir e/ou atenuar as restrições aos chamados Benefícios de Prestação Continuada (BPCs), pagos a idosos de menor renda e portadores de deficiência, às aposentadorias rurais e aos abonos salariais. Embora o impacto fiscal de abrir mão dessas mudanças não seja irrelevante – pelos cálculos oficiais, chega perto de R$ 300 bilhões em dez anos –, o impacto sob o ângulo da justiça social é bem maior.
A equipe econômica demonstra inquietação com o risco de que a proposta para a Previdência seja desidratada na Comissão Especial. Não é improvável, mesmo, que o espaço de R$ 400 bilhões, “aberto” por Bolsonaro para a negociação, seja alargado. A maior preocupação, contudo, deveria ser com a qualidade dessas mudanças. Dar passagem aos lobbies corporativos, para preservar vantagens da turma do topo da pirâmide, e “apertar” a turma de baixo é tão ou mais nefasto do que um ganho fiscal mais modesto.
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