- Valor Econômico
Há riscos de se governar com as redes sociais
"Se você gosta de pagar multa, bota lá que é a favor do radar móvel. Se tu é contrário, vota lá o contrário. (...) No meu voto eu vou botar pra acabar com o radar móvel, tá legal?" Na sua última live no Facebook, o presidente Jair Bolsonaro anunciou que fará uma enquete para saber se os brasileiros são contra ou a favor dos radares móveis. Segundo ele, essa pesquisa na rede social servirá para o governo decidir se acabará ou não com esse instrumento de fiscalização de velocidade nas estradas brasileiras.
Bolsonaro não é o pioneiro no uso dessas consultas virtuais para embasar suas decisões políticas. Em fevereiro, o senador Jorge Kajuru (PRP-GO), já havia utilizado as redes sociais para definir seu posicionamento na eleição para presidente daquela Casa legislativa.
Mas consultas populares podem ser tiros no pé de quem as promove. O site da Câmara dos Deputados informa que 58% dos internautas são totalmente contra a reforma da Previdência, enquanto apenas 30% posicionam-se a favor. Se tivesse que seguir a vontade dos 135.000 votantes dessa pesquisa, Bolsonaro deveria abrir mão da tábua de salvação proposta por seu ministro da Economia, Paulo Guedes, talvez decretando o fim prematuro de seu governo.
Analisando as enquetes que mobilizaram o maior número de eleitores na página do Senado Federal, vemos que muitas das polêmicas alimentadas por Bolsonaro desde a campanha eleitoral estão no topo. A má notícia para o presidente é que os internautas se posicionaram radicalmente contra a proposta do ex-senador Magno Malta de revogar a união homoafetiva, além de apoiar em peso a proposta que criminaliza a homofobia no país.
Outras propostas tiveram resultado bem mais apertado. Alguns vão na direção do que defende Bolsonaro, como a manutenção do Estatuto do Desarmamento, que acabou por autorizar a comercialização de armas no Brasil, e a criminalização do MST e da ideologia de gênero nas escolas. Sua agenda de costumes, porém, seria derrotada na questão do aborto e na instituição do programa Escola sem Partido. O tema em que os internautas mais se dividem, no entanto, diz respeito ao próprio presidente: a sugestão popular de se conceder anistia a Bolsonaro na ação criminal que ele responde por agredir a deputada federal Maria do Rosário (PT-RS) racha o "eleitorado" ao meio.
Do ponto de vista técnico, essas enquetes não têm qualquer valor científico. Diferentemente das pesquisas de opinião, ancoradas em amostras que mimetizam as diferenças populacionais, consultas realizadas na internet são fortemente enviesadas por não captarem a opinião de quem não acessa a rede, serem influenciadas por robôs e por darem peso desproporcional aos seguidores de quem as promove.
Acontece que, diante da crise de legitimidade nas principais democracias mundiais, o uso de instrumentos de consulta da vontade popular têm sido uma tentadora opção adotada de forma cada vez mais difundida. Pesquisa realizada pelo cientista político David Altman para o V-DEM Institute mostra que um número crescente de países tem adotado plebiscitos, consultas populares e referendos para embasar decisões de políticas públicas ou mudanças constitucionais.
Embora existam países com longa tradição no uso desses instrumentos, como a Suíça e nosso vizinho Uruguai, é preciso ter um pouco de cautela antes de elegê-los como remédio para a democracia. O Brexit está aí para nos oferecer muitas lições. Questões extremamente complexas não podem ser resumidas a uma simples escolha entre "sim" ou "não". Além disso, grupos de interesse fortemente organizados podem levar a população a votar com o fígado, especialmente em meio a crises econômicas, afastando o veredicto final da racionalidade.
Por mais paradoxal que possa parecer, a participação direta do povo pode carregar os germes que podem corroer a própria democracia. Em momentos de crise, líderes populistas com pendores autoritários frequentemente recorrem a plebiscitos e referendos para contornar resistências no Congresso e nos partidos políticos - de Hugo Chávez, na Venezuela, que se valeu de vários desses mecanismos para se manter no poder, a Viktor Orbán, na Hungria, que convocou um referendo para questionar decisões da União Europeia.
Conclamar militantes a ir às ruas para apoiar reformas e realizar consultas populares na internet para embasar suas decisões podem ser uma prévia de uma nova forma plebiscitária de se fazer política no Brasil. Recomendo ficarmos de olho.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de "Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro".
Nenhum comentário:
Postar um comentário