- O Globo
Não terá sido à toa que Jair Bolsonaro se declarou como de centro direita. Não importa o que realmente seja; mas o espaço que pretende ocupar —e, sobretudo, o lugar para o qual quer empurrar os demais atores políticos. Em campanha permanente, trabalha para engessar o tabuleiro de modo a reproduzir, em 2022, o ambiente polarizado no qual se elegeu em 2018.
O discurso exprime um movimento de defesa —e só se defende quem intui, ao menos, uma ameaça. Bolsonaro é desaparelhado para uma disputa contra o centro, o que pressupõe debate convencional. É desprovido de ferramentas para enfrentar algo que não seja uma guerra, o que presume um oponente extremista — um adversário que possa ser vendido como inimigo. Ele sabe que o centro está esfacelado tanto quanto que seu rearranjo colocaria em risco seu projeto de poder.
Concluí meu artigo anterior afirmando que o ressentimento bolsonarista — a linguagem de investimento total em crises —só poderia ser politicamente vencido por meio da superação do sentimento social de vingança “contra tudo isto que está aí”, gatilho antipolítico que converteu a radicalização em atitude pública normal, e da reconstrução da ideia de centro entre nós, o que equivaleria a recolocar o valor do equilíbrio, da estabilidade, na cesta de desejos da sociedade.
Não será fácil; porque, para tanto, precisaríamos tornar ao menos respeitável a cultura republicana da impessoalidade e do governante limitado, e isto justamente quando a demanda representativa do cidadão, este sujeito de “saco cheio”, fincou-se na percepção da política como obra da vontade rompedora do populista eleito, o que transformou, por exemplo, a defesa do estado de direito em conversa elitista — em golpe do establishment, materializado em Congresso e STF —para preservar o status quo.
Não será fácil; porque, assaltados pela gramática da conflagração, perdemos a capacidade de leitura para o óbvio, conforme expressa a evidência de, estando sob uma depressão política profunda decorrente de quase duas décadas de exaltação do “nós contra eles”, havermos consagrado um presidente —mais um personalista salvador da pátria — que é própria a encarnação da mitologia dos extremos.
Não será fácil; porque escolher a mitologia dos extremos como instrumental para atravessar logo uma depressão política fruto da radicalização significa sólida aplicação em nos manter cativos a um spinner de depreciação do diálogo que paralisou, que prendeu preventivamente, o debate público num território, propriedade bolsonarista, em que a simples noção de centro — de ponderação —está interditada.
Não será fácil, embora a premissa de convencimento, tocando no bolso das pessoas, seja simples: a de que a República do Curto e da Caça, conforme defini o governo Bolsonaro, por sua vocação para a ruptura, o que resulta em terreno instável, imprevisível, não seria apetrechada para executar um programa de reformas estruturais na economia capaz de fazer o país voltar a crescer e gerar empregos.
Reforma — reforma liberal para valer — exige chão firme, regras assentadas, autocontenção institucional, e um olhar que possa alcançar o horizonte, mirada de médio a longo prazo sem a qual não haverá quem invista. Sob o bolsonarismo, fenômeno forjador de contenciosos, isso não será possível.
Sim. A badalada equipe econômica foi escolhida por Bolsonaro. Era um ativo eleitoral. Assim continua. Nada mudou. Ativos eleitorais são descartáveis; não compõem —não necessariamente —aquilo que se pode chamar de convicção. O presidente formou um time, no Ministério da Economia, do qual é o principal agente limitador. Um fato; como fato é que opera uma máquina para a reeleição. Corrida curta. O que lhe serve, hoje, como impulso para se reeleger tende a ser o prescindível de amanhã. Isto ficará mais cristalino, creio, caso a gestão da economia entregue as condições imediatistas (um voo de galinha) para que se sinta imbatível nas urnas.
Temos aí, triste figura, o ex-Moro. Quem duvida de um ex-Guedes?
A pergunta tem fundamento na constatação de que, para além da aversão a figuras que possam rivalizar com o protagonismo do líder carismático, o bolsonarismo, força autoritária, tem constituição incompatível com a democracia liberal, um corpo hostil aos princípios do liberalismo político, daí por que possa até se banquetear, circunstancialmente, dos liberais econômicos para os quais o ímpeto autocrático daquilo a que servem não seja um problema (para muitos, vê-se, é a solução); mas sem jamais perder o futuro de que, ao próximo banquete, antecede tanto a liberação da matéria quanto o acionamento da descarga.
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