- O Estado de S.Paulo
Liberdade de informar e de opinar convive com restrições que se imaginavam extintas
A objetividade na imprensa é possível? A pergunta é velha, mas de uns dois ou três anos para cá ganhou notas de um nervosismo inédito – ou de cinismo reles. A interrogação está na ordem do dia. É sensato esperar que uma reportagem nos dê uma cobertura fiel, veraz, precisa, justa, desapaixonada sobre o que faz e diz o presidente da República? Pode-se esperar do texto elaborado por uma redação profissional a correspondência confiável entre as palavras e os fatos?
O tema nunca foi simples. Agora, desde que líderes falastrões e autoritários se viram alçados ao poder em países democráticos, ficou mais complicado. Como reportar objetivamente os acontecimentos da política quando o mandatário ofende a objetividade com suas palavras infundadas? Como reportar os discursos oficiais que induzem a erro? Quando o governante não é zeloso na observância dos fatos, ou mesmo quando ele mente, como registrar sua fala com isenção, mas sem ingenuidade? Como a imprensa pode adotar uma postura que seja ao mesmo tempo serena e vigilante?
Para quem não tem familiaridade com os dilemas das empresas jornalísticas, essas indagações podem soar tolas ou mesmo vazias, mas, acredite, são indagações mortais. Se um jornal é dócil e solícito a um governante áspero e insensível, vai passar por sabujo e se desmoralizar. Mas se um jornal deixa de registrar o que se passa para enxovalhar a autoridade, sem senso de proporção, vai se desviar para o proselitismo e perderá credibilidade. Qual a justa medida? Onde está o critério?
As dúvidas estão na mesa. A imprensa passa por ameaças que jogam sombras sobre o futuro. Enquanto perde mercado e anunciantes para as plataformas sociais, enquanto perde sustentabilidade econômica, é alvo de bombardeios reiterados e pesados de governantes que não têm apreço pela verdade factual. Isso em vários países. Economicamente fragilizada, a imprensa se vê politicamente sitiada. E aí? Como manter a objetividade diante de poderes que são ostensivamente contrários ao trabalho dos jornalistas?
Não por acaso, perguntas como essas voltam à pauta em algumas das melhores redações do mundo. Aqui, no Brasil, há pouco mais de um mês, no dia 31 de agosto, editorial do Estado com o título de Desafio jornalístico enfrentou o mal-estar e se perguntou: “Como ser objetivo diante de reiteradas declarações presidenciais mentirosas, cínicas ou que se prestam a confundir?”. Se o presidente proclama teses fraudulentas, como proceder? As respostas não são automáticas, é claro, mas o editorial soube extrair do impasse uma recomendação sóbria: “Se o veículo que reproduz a declaração presidencial sabe se tratar de uma falsidade ou de uma tentativa de manipulação, deveria deixar esse fato explícito para o leitor”.
Desde agosto, quando o editorial foi publicado, a coisa só piorou. O “desafio jornalístico”, na verdade, é um desafio histórico de grande envergadura. A liberdade de informar, de se expressar e de opinar convive com restrições que se imaginavam extintas. Nos nossos dias, a manutenção dessa instituição chamada imprensa, que só foi inventada para fiscalizar o poder e para fazer soar o alarme quando há desvios, precisa ser defendida. Demanda cuidados.
No meio da barulheira de certas redes sociais mais extremadas, que se comprazem em xingar de “comunistas” alguns dos maiores órgãos de imprensa do Brasil, a pressão cresce. As massas virtuais deslocaram-se para bolsões de fanatismo onde os fatos não têm valor algum. Nos polos mais à direita, os que levantam um senão contra o líder populista ultraconservador são hostilizados. Veículos de comunicação temem perder audiências. Ser crítico do poder não sai de graça. As multidões raivosas procuram uma mídia que se entregue ao sensacionalismo fascistizante e adote preconceitos no lugar da verdade factual. Na internet, nas bancas de revistas e no rádio pipocam os comunicadores do ódio que pegam carona na histeria autoritária na tentativa de arregimentar plateias e faturar na publicidade. Uns se deram mal, outros se dão bem. Com seus flancos abertos, os órgãos de imprensa mais sérios sentem na carne o sinal destes tempos de sombra: ser objetivo tornou-se um negócio de risco.
Isso mesmo: negócio de risco. Ser objetivo requer ser crítico e ser crítico significa dissentir. Ser objetivo, nesta hora, exige independência de pensamento para compreender a natureza das forças que avançam e recuam nos fluxos e contrafluxos da esfera pública. A técnica jornalística sozinha não resolverá o impasse. Ao lado dela, o pensamento precisa elaborar o critério da cobertura. É nessa medida que a crise das redações, hoje, mais do que uma crise econômica ou tecnológica é uma crise de pensamento. Para cobrir bem é preciso pensar bem – com independência.
A objetividade, embora exija equilíbrio e ponderação, não é um ponto equidistante entre o elogio da ditadura (uma mentira essencial e bruta) e o cultivo da democracia. Se pretendemos primar pela objetividade, é preciso registrar, objetivamente, o fato singelo de que as mentalidades agora instaladas no poder promovem medidas censórias e preconceituosas, deixando claro que não têm compromisso com o campo democrático. Investigar e reportar esse fato não é fazer militância partidária. Ao contrário, é uma exigência da objetividade. Quem não pertence ao campo democrático não entende por que a imprensa precisa existir – e por isso lhe dá combate sem trégua. Logo, a imprensa objetiva deve informar o público sobre as razões – objetivas e subjetivas – pelas quais vem sofrendo tantos ataques do poder. Fechar os olhos para esse fato, isso, sim, é adotar uma postura militante – a paradoxal militância por passividade.
Se na barulheira das redes sociais ultraconservadoras a democracia é causa minoritária, o papel da imprensa – que tem o dever da objetividade – é navegar na contramão. Nem que seja por instinto de sobrevivência.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
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