quinta-feira, 10 de outubro de 2019

Renato Galeno* - O chanceler e a gargalhada de Diógenes

- O Globo

Wittgenstein impressionou a civilização ocidental com sua “virada linguística” e a descrição de como é preciso um critério externo para verificar se o que eu falo faz sentido. Se não, “acreditar seguir a regra seria o mesmo que seguir a regra”, escreveu ele. Imaginar ter asas me permitiria pular pela janela e voar. Para nós, brasileiros, parece óbvio, pois Machado nos mostrou isso em “O alienista” — o louco acha que os demais são loucos e só ele é são. Então vi o discurso do chanceler Ernesto Araújo na Fundação Heritage, nos EUA, mês passado.

O ministro do Exterior do Brasil afirma que o governo do qual participa integra uma “revolta contra a ideologia”. E tentou descrever e atacar o que chama de “globalismo”, “climatismo”, “ideologia de gênero” e “oicofobia” (o “ódio à sua própria nação”, segundo ele). O que conseguiu foi escancarar as contradições lógicas, a ignorância e a desonestidade intelectual do movimento obscurantista que cresce no mundo.

O discurso é um ataque ao que chama de ideologia. Afirma que o “marxismo cultural” (que não define —provavelmente por este conceito não fazer sentido) está fazendo “nossa civilização” perder os símbolos, aquilo “que nos guia de cima”. As citações de pensadores se encaixam em três categorias. Ou são vazias (só nomes citados, como Lukács, Rosa Luxemburgo ou Negri; ou sem sentido; ou mal interpretadas, e aqui falo de Gramsci.

Acho que o fetiche que os seguidores do astrólogo sentem pelo pensador italiano perseguido pelo fascismo é um ato falho, pois o chanceler tenta usar métodos “gramscianos” para travar sua “guerra cultural”, como (cito agora Gramsci) “não se cansar jamais de repetir os próprios argumentos” e ter um “grande filósofo individual” para pregar a “filosofia dos não filósofos, desagregada, incoerente, inconsequente, conforme à posição social e cultural das multidões das quais ele é a filosofia”.

Após retirar de contexto Brecht, Foucault e Lacan, Araújo chega à espantosa conclusão de que “se você tira do homem a dimensão simbólica, onde Deus habita, eu acho, nem comer carne é permitido”. Isso depois de comparar possíveis sanções comerciais ao Brasil, devido à destruição da Amazônia, às execuções ordenadas por Stalin. É a invenção do stalinismo vegano.

Como ele não percebe que aceitar qualquer estrutura simbólica é adotar uma ideologia (um conjunto de crenças normativas)? Ele afirmou que, nas eleições de 2018, o único candidato que acreditava em “liberdade, nacionalidade e Deus” era Bolsonaro — a liberdade que comemora a ditadura e defende a tortura, o “Deus acima de todos” num Estado laico e plural. Para o filósofo amador Araújo (a moda pegou), o nacionalismo é o que evita o globalismo, que é um “mundo sem símbolos”. Ora, mas o nacionalismo, obviamente, é uma ideologia!

O principal ataque do ministro foi ao que chamou de “ideologia da mudança climática, ou climatismo”. Sem perceber o erro infantil que cometia, leu um trecho do último relatório do painel da ONU sobre o tema: há uma “confiança média” na relação direta entre o aquecimento global e extremos climáticos. Ele acha que isso indica só uma confiança média no elemento humano no aquecimento global. Mas o que o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas diz é que não há, ainda, como ter certeza da relação direta entre o consensual aquecimento global provocado pelas ações humanas com o aumento da intensidade de furacões, por exemplo. É a desonestidade intelectual (ele negou várias vezes nos EUA os dados de satélites sobre os incêndios, os maiores desde 2010) encontrando a ignorância.

Refugiei-me, como sempre faço diante de ideias sem sentido, em Diógenes, o filósofo grego que se despiu de todas as não naturais convenções sociais — das ideologias. Na minha imaginação, perguntei a ele o que achava do discurso. Não consegui resposta, pois ele apenas gargalhava.

*Renato Galeno é professor de Relações Internacionais do Ibmec-RJ

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