- O Globo
Que ninguém se espante se o próximo ano for repleto de manifestações
Normalmente eles têm razão. Não apenas porque reúnem coragem e saem de casa para dizer o que pensam, o que já é bastante, mas porque quase sempre estão refletindo um sentimento que assalta o coração da maioria. Os manifestantes que ocupam as ruas e que gritam e se batem em favor de temas que dizem respeito à vida dos cidadãos são muitas vezes ingênuos, e em outras cumprem apenas um ritual juvenil. Mas estão ali, enfrentando o Estado e a sua polícia, porque acreditam que, se vencerem, todos ganharão. Não falo dos manifestantes de corporações, que apenas sopram a brasa debaixo da sua sardinha. Me refiro aos que gritam pela floresta, pelos direitos civis, em favor das mulheres, dos gays, dos negros, da liberdade de expressão, da democracia.
Não, não me refiro aos manifestantes que fazem atos de política partidária, que se esgoelam porque perderam o poder numa eleição ou porque não se conformam com o programa de governo de quem a venceu. Estou tratando dos que bloqueiam as ruas em protesto pelo aumento de 14 centavos na passagem dos ônibus, como se viu em 2013, mas não dos que pegam carona nas mobilizações para apresentar reclames próprios, corporativos, partidários ou sindicais. São homens e mulheres que defendem minorias e causas ignoradas pelo Estado e esquecidas pela sociedade. São jovens, alguns de idade, todos de espírito. Estou falando de pessoas de muito valor.
Sorte do país cujo povo sabe se defender das gigantescas estruturas estatais, indo para a rua, gritando, exigindo respeito. Na França, essas manifestações de indignação e confrontação são tão comuns que ganharam até um apelido carinhoso. São as manifs. Em Paris, elas partem sempre da Place de la République em direção à Bastilha. Antes das enormes demonstrações dos coletes amarelos, as manifs tinham objetivos mais claros e muitas vezes cirúrgicos. No Brasil, depois da supermanifestação “contra isso tudo que está aí” de 2013, houve diversas outras, mas as maiores e mais barulhentas foram quase todas de natureza partidária ou corporativa.
As partidárias são bem conhecidas, sobretudo aquelas em favor do impeachment da Dilma e as do Fora Temer. As corporativas vão desde o bloqueio de ruas por taxistas contra motoristas de Uber, que eram triviais há três anos, até a megaparalisação de caminhoneiros que gerou a maior crise de abastecimento da história do país no ano passado. Essas, embora importantes e algumas vezes gigantescas, têm muito menos valor do que as que se espalharam pelos estados em favor da Amazônia, da manutenção das bolsas de estudo da Capes, de salários iguais entre homens e mulheres, a favor da comunidade LGBTQI+, dos negros dos oprimidos, dos excluídos.
As pequenas demonstrações de dor e indignação que aconteceram no Rio em protesto pela morte da menina Ágatha, vítima de uma monstruosa imprudência policial, têm mais sentido e calam muito mais profundamente no coração do carioca do que todas as demais. Segurança, saúde, educação, meio ambiente, democracia, os temas são muitos e estão na pauta do dia. São eles que merecem cada vez mais atenção, debate e protesto. E a temporada de manifestações e protestos parece estar começando. O governo, com uma política dura, meio burra e absolutamente inflexível, já começa a ouvir o rufar dos tambores.
Que ninguém se espante se o próximo ano for repleto de manifestações dessa natureza. Claro que haverá aproveitamento político partidário em ano eleitoral. Sempre foi assim e seguirá sendo. Os caroneiros vão estar presentes nas filas às portas dos hospitais, em frente a escolas públicas caindo aos pedaços, no velório das muitas outras vítimas da política de segurança que morrerão em 2020. Mas os genuínos, os que estarão lá para expressar inconformismo e determinação, esses têm o poder de manter o país sólido e impermeável a autoritarismos.
Esses têm a força. Serão eles que gritarão por democracia e liberdade, contra a censura, sempre. A onda autoritária que varreu o país nas eleições de 2018 deverá ser confrontada no ano que vem. Prepare-se, Brasil, as manifs vêm aí.
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