- Folha de S. Paulo
A tecnologia não voltará atrás, e a difusão de informações não será mais controlada
Ao longo de 2019, ficou claro que o governo não tem qualquer intenção de moderar seu discurso e sua estratégia de ataques constantes a todas as instituições democráticas (Congresso, STF, imprensa, universidade, ciência). A imprensa, em particular, foi escolhida como inimiga jurada do governo, com direito a ameaças a anunciantes da Folha e à licença da Rede Globo. A ciência e as universidades também estiveram na mira.
A pior reação num momento como este seria adotar uma posição convictamente contrária ao presidente. Um blog de notícias pode se dar ao luxo de “ter lado” e anunciá-lo com orgulho. Um veículo de jornalismo profissional, contudo, capaz de falar a todos, deve sempre mirar no ideal (ainda que jamais plenamente alcançável) da objetividade.
Não é só do governo, contudo, que vêm os problemas. A sociedade crescentemente desconfia da mídia e das universidades. Há menos de duas semanas, a simples decisão editorial da Folha de escrever “Flávio”, sem o sobrenome, no título de uma reportagem que era obviamente sobre Flávio Bolsonaro levou centenas de internautas a concluir que o jornal está protegendo o presidente da República. A acusação é absurda, mas não houve argumento que convencesse os indignados.
A falha não está no teor dos argumentos, assim como não está no teor do discurso de um cientista que tenta em vão convencer um terraplanista. O problema não é de intelecto, e sim de vontade: perdeu-se a confiança mais elementar nas instituições.
É cínico atribuir às falhas da imprensa a crescente desconfiança do público. Não que ela não tenha falhas; tem, e muitas. Mas não é por causa delas —da falta de rigor na apuração de certos fatos, no uso imperfeito de números, num viés que tenha afetado alguma reportagem— que o descontentamento está alto. É simplesmente por não ser partidária o bastante para o gosto do leitor. É como se um consumidor reclamasse de uma refeição caseira e variada porque ela é gordurosa e passasse a almoçar junk food numa lanchonete.
O sucesso de youtubers e de fake news divulgada por grupos de WhatsApp dá o caminho: instituições estão em baixa; pessoas estão em alta. Isso vale para a política, mas também para a informação, seja jornalística ou científica. O cientista tem razão em seu desprezo pela ignorância crédula de quem adere ao terraplanismo, mas esse desprezo só dificulta o trabalho de reconquistar essa pessoa para o lado da razão.
Dar ao cidadão médio acesso às pessoas que fazem jornalismo e ciência no Brasil, permiti-lo olhar dentro da Redação e do laboratório, conhecer e se afeiçoar às pessoas que fazem esse trabalho são passos necessários para conquistar a confiança e, aí sim, ter alguma chance de persuadi-lo racionalmente sobre os elementos básicos do jornalismo e do método científico. A carteirada institucional já não vale mais nada; isso quando não tem peso negativo. A tecnologia não voltará atrás. A produção e difusão de informação não serão mais controladas.
2020 promete ser 2019 ao quadrado. O provável aquecimento da economia, ao contrário, dará ainda mais liberdade para colocar as asinhas de fora. As acusações de corrupção contra o governo tornarão a mentira fanatizante ainda mais necessária para sustentar sua imagem. A quebra de confiança para com as instituições básicas do conhecimento não é culpa nem da imprensa nem da ciência. Caberá aos profissionais dessas áreas, contudo, consertar aquilo que não quebraram. O sucesso nesse desafio são meus votos para 2020.
*Joel Pinheiro da Fonseca, economista, mestre em filosofia pela USP.
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