Caldeirão chileno – Editorial | Folha de S. Paulo
Acuado por protestos, governo convoca plebiscito que pode mudar contrato social
Na última sexta (27), o Chile deu um passo histórico com a convocação, por parte do presidente Sebastián Piñera, de um plebiscito constitucional. Trata-se da principal resposta do mundo político às virulentas manifestações que há mais de dois meses chacoalham o país.
A votação dará início a um processo que pode culminar na redação de uma nova Carta, para substituir a elaborada em 1980 durante o regime do ditador Augusto Pinochet, que durou de 1973 a 1990.
Os chilenos responderão, em abril do ano que vem, a duas perguntas: se querem ou não uma nova Constituição e que tipo de órgão deve escrever o documento —se um colegiado inteiramente composto por representantes eleitos, ou uma assembleia mista, na qual metade será designada por voto direto e metade pelo Congresso.
Se a primeira pergunta do referendo for aprovada, a escolha dos representantes constitucionais ocorrerá em outubro de 2020, com as eleições regionais e municipais.
O trabalho da assembleia principiará do zero, ou seja, sem o uso de qualquer artigo atualmente em vigor, e qualquer dispositivo só será incluído no texto se contar com o apoio de dois terços dos parlamentares. Ao final, o resultado obtido ainda precisará ser ratificado em nova votação popular.
Herança do período de exceção, a Carta vigente sofreu emendas ao longo dos últimos 40 anos, mas não prevê uma atuação maior do Estado nos setores de educação, saúde e previdência, que representa boa parte das demandas expressas hoje pelos manifestantes.
Um dos países mais prósperos da América Latina, o Chile tem renda per capita bem superior à brasileira (US$ 26,3 mil contra US$ 16,5 mil, segundo valores ajustados pelo poder de compra das moedas nacionais). Entretanto seu gasto público se limita a 25% do Produto Interno Bruto, ante 38% no Brasil.
Se a busca por um novo contrato social pode em tese se tornar um desdobramento positivo do levante chileno, a violenta repressão aos protestos é consequência deplorável. O Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos denunciou uma série de casos de estupro, tortura e abusos perpetrados pelas forças de segurança.
Diante das acusações, a polícia chilena anunciou uma revisão profunda de suas diretrizes, bem como apurar as responsabilidades pelos excessos —algo que, se não elimina a mancha civilizacional, talvez impeça que ela se repita.
Armas e riscos – Editorial | Folha de S. Paulo
Com estímulo temerário do bolsonarismo, posse de armamentos de fogo avança
Fiel à promessa de liberalizar a posse e o porte de armas de fogo, o presidente Jair Bolsonaro empenha-se em tentativas de afrouxar normas prudenciais que regem a matéria. Mesmo tolhido pelo Congresso, começa a colher os primeiros resultados —que suscitam inquietação, embora não se veja propriamente motivo para alarme.
Apenas nos 11 primeiros meses de 2019, os registros para a posse elevaram-se em 48% na comparação com o ano anterior completo. Em 2018, foram 47,6 mil inscrições; no ano que se encerra, contavam-se 70,8 mil até novembro.
Com isso, havia em outubro 1.013.139 de registros ativos no Brasil, segundo a Polícia Federal. A cifra, que não chega a ser expressiva diante da população nacional, não inclui armas de caçadores, atiradores e colecionadores, controladas pelo Exército, que recebeu neste ano 65 mil pedidos, incremento de 8% sobre 2018.
Até quem não comunga do entusiasmo infantil dos filhos do presidente com os artefatos letais poderia enxergar aí algum progresso, se a alta dos registros correspondesse a um processo de legalização.
Seria preciso uma dose excessiva de otimismo, porém, para concluir que a proliferação de armas registradas representa uma diminuição de congêneres clandestinas.
Cabe prever, antes, o contrário: a partir de agora há risco de expansão da quantidade de armas ilegais em circulação. Isso porque, dentre as que terminam recolhidas pela polícia, 53% haviam sido furtadas ou roubadas de casas e lojas.
Preocupa, ainda, que o governo tenha ampliado o número de balas e cartuchos que cada colecionador, atirador ou caçador pode comprar por ano —1.000 no caso de calibres restritos e 5.000 nos demais.
Dada a precariedade do controle de munições pelo poder público, imagine-se quantos desses projéteis terminarão no comércio ilegal.
Some-se a isso a facilitação das regras de transporte de armas e a permissão para utilizá-las em toda a extensão de propriedades rurais, coisas que alguns especialistas equiparam a uma generalização disfarçada do porte, antes prerrogativa de raras categorias profissionais sujeitas a risco.
Verdade que a taxa de homicídios no país esteve em declínio acentuado neste ano, ao mesmo tempo em que se multiplicavam as armas guardadas por cidadãos. Nenhum estudioso sério de segurança pública, entretanto, vincularia diretamente uma coisa à outra.
A interpretação de dados, particularmente nesse tema, costuma estar contaminada por preferências ideológicas. Mas há evidências sólidas de que o maior acesso a revólveres, pistolas e outros artefatos eleva o risco de homicídios não justificáveis, acidentes e suicídios.
Metas de desempenho – Editorial | O Estado de S. Paulo
Entre as leis aprovadas pelo Congresso no final de outubro e no começo de novembro e sancionadas pelo presidente Jair Bolsonaro, uma das mais importantes é a de n.º 13.934/19, que cria o contrato de metas de desempenho para órgãos da administração pública direta e indireta federal. Se atingirem os objetivos estabelecidos, eles receberão benefícios, como maior flexibilidade para gerir seus respectivos orçamentos, receber receitas de fontes não orçamentárias, criar banco de horas para os servidores e desburocratização para pagamento de despesas de pouco vulto.
Apesar de sua importância, a ideia – que foi convertida em projeto de lei apresentado pelo senador Antonio Anastasia (PSDB-MG) em 2016 – não é nova. Ela permite que órgãos públicos tenham uma gestão semelhante à da iniciativa privada e é prevista pela Emenda Constitucional n.º 19, aprovada em 1998. A iniciativa tem por objetivo propiciar autonomia gerencial, orçamentária e financeira a órgãos dos Três Poderes da União e estabelecer parâmetros de análise de desempenho.
Ela foi posta em prática uma década e meia depois em Minas Gerais, quando Anastasia estava à frente do governo estadual. Chamada de “acordo de resultados”, ela previa até gratificações para servidores públicos, em caso de cumprimento de metas. “A nova lei traz ganhos em todos os sentidos, com os recursos alocados de acordo com objetivos determinados, metas para serem alcançadas e controles bem mais efetivos de produtividade. Ninguém se atenta ao quanto o Estado costuma perder quando a gestão é ineficiente. Bilhões de reais vão para o ralo todos os anos por falta de planejamento, porque não foram mensurados resultados e também porque não se avaliou se esses resultados fizeram jus aos investimentos despendidos”, afirma o senador.
Com base na experiência que realizou em Minas Gerais, Anastasia apresentou o projeto para implantá-lo no plano federal. Aprovada pelo Senado e pela Câmara, a lei é uma versão reduzida de um texto legal mais amplo, que chegou a ser discutido pelo Executivo com um grupo de juristas e de parlamentares há quase dez anos. Os benefícios que os órgãos supervisores poderão negociar com os órgãos supervisionados terão de levar em conta indicadores de resultados que ainda dependem de regulamentação por parte do Executivo. “Vamos regulamentar a lei no primeiro trimestre de 2020. A ideia é dar mais autonomia para as áreas da administração pública e focar mais em resultados. Atualmente, a administração pública tem o hábito de focar em processos”, afirma Paulo Uebel, secretário especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital.
A principal diferença entre a experiência mineira e a lei federal, que entrará em vigor em junho do próximo ano, está no fato de que, no âmbito da União, não haverá gratificações para servidores. O motivo não foi econômico, mas jurídico. Segundo a Constituição, mudanças legais relacionadas a Orçamento não podem ser de autoria do Legislativo, mas do Executivo. Segundo a nova lei, o prazo de vigência dos contratos não poderá ser inferior a um ano nem superior a cinco anos. Ela também prevê a responsabilização de dirigentes públicos no caso de apresentarem maus resultados.
A Lei n.º 13.934/19 está longe de ser uma revolução na máquina governamental da União. Mas, ao implantar modelos de gestão flexíveis, criar condições para que órgãos de diferentes níveis hierárquicos passem a trabalhar com objetivos comuns, propiciar uma cultura de avaliação do desempenho do funcionalismo e impor novas regras para acompanhamento e controle de resultados da gestão pública, ela é um passo importante para a modernização de estruturas arcaicas, organizadas com base nos modelos burocráticos de administração do século passado. A nova lei é condição necessária, ainda que não suficiente, para que o País implante um modelo gerencial à altura de suas necessidades no século 21.
Não se deve adiar a privatização da Eletrobras – Editorial | O Globo
Congresso precisa ter consciência de que está em jogo a energia necessária para o crescimento
A cada proposta que implique modernizar a máquina pública, com a redução de privilégios de castas que capturaram partes do Estado em proveito próprio, e que necessite da aprovação do Congresso, há previsíveis resistências entre parlamentares. Faz parte da democracia representativa. Resta empreender negociações políticas no Legislativo, para convencer bolsões de resistência de que medidas que na aparência são impopulares resultarão em ganhos para a população como um todo.
O bom exemplo recente é a aprovação da reforma da Previdência. Apesar da cerrada campanha contra, normas do sistema previdenciário foram aperfeiçoadas no sentido correto.
O acúmulo de ajustes a serem feitos é grande. Por isso, a pauta do Congresso é cada vez mais desafiadora para deputados e senadores. Um dos projetos que se enquadram no quesito de alta relevância é o da privatização do controle da Eletrobras, tema que vem do governo Michel Temer e é tratado com a relevância necessária pela equipe econômica de Jair Bolsonaro. No início de novembro, projeto de lei, com a assinatura do presidente, foi enviado ao Congresso, onde o esperavam resistências anunciadas. Certo tipo de político não gosta de privatização porque costuma usar as estatais para viabilizar projetos pessoais e de poder. Um Estado sem empresas é o que poderia acontecer de melhor para a sociedade. Ao contrário, para esses políticos é o mais assustador dos pesadelos.
Informa o jornal “Valor” que as resistências aumentaram. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), ainda não instalou comissão para dar início à tramitação do projeto. E talvez só instale para debater o assunto. Espera, informa-se, que articuladores do governo aplainem o terreno no Senado, para que a Câmara não aprove uma proposta que poderá ser rejeitada na outra Casa. O presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), precisa ajudar.
Enquanto isso, o tempo passa, e projetos de investimento no setor elétrico não decolam, porque o maior acionista da Eletrobras, o Estado, sabidamente não tem dinheiro.
As maiores resistências estão em bancadas do Norte e Nordeste, com longa tradição de atuarem no setor elétrico. Precisam ser convencidas do contrário, pois há risco real de faltar energia para o país voltar a crescer de maneira sustentada. A péssima experiência do apagão da década de 90, na gestão FH, deveria convencê-las do perigo à frente.
O Estado não sairá por completo da empresa. Ficará com menos de 50% das ações com direito a voto da companhia, mas sem “golden share” — que dá direito a vetos —, para tornar o negócio mais atrativo ao setor privado. Será aplicada a fórmula da bem-sucedida diluição do controle da BR Distribuidora, outrora da Petrobras, cuja posição majoritária foi compartilhada com investidores no mercado.
O país já tem muitos entraves para voltar a crescer. Não pode permitir que a essas dificuldades venha se somar a falta de energia.
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