Mancha na reforma – Editorial | Folha de S. Paulo
Novo regime previdenciário militar inclui vantagens negadas a outros setores
Aprovada pelo Senado em votação simbólica nesta semana, sem maior debate, a reforma do regime previdenciário dos militares preservou vantagens em relação às regras vigentes para trabalhadores do setor privado e servidores civis.
Houve avanços, por certo, como o aumento do tempo mínimo exigido de serviço, de 30 para 35 anos, e da contribuição, de 7,5% para 10,5% até 2021, agora estendida para pensionistas, além de ativos e inativos. Com tais mudanças, a economia proporcionada em dez anos seria de R$ 97,3 bilhões, segundo cálculos do governo.
Em paralelo, porém, foi promovida uma reestruturação de carreiras e gratificações, que custará R$ 86,7 bilhões no próximo decênio. Com isso a redução geral de despesa cai drasticamente, para não mais de R$ 10,45 bilhões no período.
Mantiveram-se, ademais, dispositivos descabidos. Continua a não haver exigência de idade mínima, principio estabelecido para todas as outras categorias.
Também estão previstas no texto aprovado a integralidade (passagem para inatividade com o último salário) e a paridade (garantia de reajustes de remuneração idênticos aos dos ativos), prerrogativas anacrônicas e insustentáveis.
Cumpre lembrar que o déficit previdenciário dos militares é o que mais custa, proporcionalmente, ao erário. Nos cálculos da Instituição Fiscal Independente, a categoria representa 31% do funcionalismo federal, mas absorve R$ 43,9 bilhões em pensões e aposentadorias, quase metade do gasto do regime dos servidores da União.
Segundo auditoria do Tribunal de Contas da União, a despesa para subsidiar um inativo militar em 2018 foi de R$ 121,7 mil, em média, ante R$ 6.500 para o setor privado.
A acomodação do governo nem surpreende, dada sua proximidade com a caserna, mas é decepcionante que o Congresso não tenha exigido maior sacrifício. Ao contrário, aceitou quase passivamente que o desenho geral da reforma fosse feito nos próprios gabinetes do ministério da Defesa e votou a proposta em rito acelerado.
É fato que os militares estão sujeitos a normas peculiares de serviço. São chamados a qualquer momento e mesmo na inatividade tecnicamente não se aposentam, sendo mantidos em reserva. Cabe, pois, um regime diferenciado, embora não tão deficitário.
Menos ainda se justifica a inclusão no projeto previdenciário de demandas salariais, que deveriam ser examinadas em uma revisão ampla da estrutura de remuneração do serviço público.
A manobra adotada manchou a ampla reforma do sistema de aposentadorias levada a cabo neste ano, que teve entre seus objetivos principais —em grande parte, cumpridos— reduzir iniquidades.
Bolsonaro descobre o Mercosul – Editorial | O Estado de S. Paulo
O presidente Jair Bolsonaro passou a valorizar o Mercosul, falou em convidar a Bolívia para entrar no clube e até mencionou, brincando, a ideia de continuar na presidência do bloco por meio de um golpe. A brincadeira ocorreu em conversa com o presidente paraguaio, Mario Abdo Benítez, seu sucessor no comando rotativo da entidade. Os dois se encontraram na reunião de cúpula realizada na cidade gaúcha de Bento Gonçalves. Em discurso, Bolsonaro apontou a convergência entre a “renovação” do Mercosul e a agenda brasileira de abertura comercial. Algo mudou no Palácio do Planalto, desde o início do governo, e nesse caso a mudança parece ter sido para melhor. Um ano antes, depois do segundo turno da eleição presidencial, o futuro ministro da Economia, Paulo Guedes, minimizou a importância do Mercosul e da Argentina para a nova administração brasileira. Nenhum dos dois, disse Guedes, era considerado prioritário.
Em menos de um ano o presidente Jair Bolsonaro pôde anunciar, em conjunto com os colegas do Mercosul, dois marcos na evolução do bloco. O primeiro foi a assinatura, depois de mais de 20 anos de negociação, de um acordo comercial com a União Europeia. Falta a ratificação de cada país, mas as longas negociações acabaram. O segundo marco foi o acerto com a Associação Europeia de Livre Comércio (EFTA), formada por Islândia, Liechtenstein, Noruega e Suíça.
Os dois eventos contribuíram, sem dúvida, para elevar o Mercosul na pauta de prioridades do presidente Bolsonaro. Foram avanços coincidentes com sua bandeira de mais abertura e integração. O governo poderia contá-los como pontos a seu favor, embora fosse recomendável, por justiça, reconhecer alguns fatos quase sempre esquecidos em 2019.
O primeiro foi o esforço dos presidentes Mauricio Macri, da Argentina, e Michel Temer, do Brasil, para concluir o acerto com a União Europeia. O avanço final decorreu principalmente desse empenho. O segundo fato foi o início da negociação com a EFTA em janeiro de 2017. Um terceiro, de certo modo o mais importante, foi a decisão de Temer e Macri de repor o Mercosul no trilho original, abandonado na fase do petismo-kirchnerismo.
A agenda combinada entre os dois presidentes incluiu a aproximação com a Aliança do Pacífico, bloco mais aberto que o Mercosul e integrado inicialmente por Chile, Peru, Colômbia e México. Em julho de 2018 representantes do Mercosul estiveram no México durante reunião de cúpula da Aliança. O interesse nessa aproximação foi reafirmado em março deste ano, em visita do presidente Bolsonaro ao Chile.
O esforço de “renovação” do Mercosul, citado em Bento Gonçalves pelo presidente brasileiro, foi iniciado, portanto, há quase três anos, pelos presidentes Temer e Macri.
De nenhum modo isso reduz a relevância de qualquer esforço do atual governo brasileiro para dinamizar o Mercosul, demolir barreiras internas, aumentar a integração dos sócios, torná-los mais competitivos e converter o bloco numa plataforma de atuação global.
O presidente Bolsonaro mencionou, em Bento Gonçalves, a proposta de seu governo de redução da tarifa externa comum. O tema, por enquanto, está apenas inscrito na agenda. O Mercosul converteu-se, como observou há alguns anos o diplomata José Botafogo Gonçalves, num clube protecionista. É preciso continuar trabalhando para resgatar o projeto inicial. As planejadas conversações com mais parceiros, como Canadá e Coreia do Sul, poderão contribuir para isso. Falta ver a disposição do próximo presidente argentino, Alberto Fernández. Ele prefere, já se sabe, uma lenta redução da tarifa externa comum.
Sem acordos ambiciosos, a reunião de Bento Gonçalves foi sobretudo importante pela reafirmação da agenda de recuperação do bloco. Integrar o novo governo argentino nesse projeto poderá ser complicado. Não haverá, no entanto, alternativa ao entendimento com o presidente Fernández, e o governo brasileiro precisará aceitar esse dado. Aceitará mais facilmente se o presidente Bolsonaro entender o Mercosul como um bloco de Estados. Governos são outra coisa.
Deve-se repensar o financiamento da política – Editorial | O Globo
Impedir empresas privadas de contribuir para partidos e candidatos não é garantia de maior lisura
É acintosa a maneira como parlamentares gastam o dinheiro público. Sem qualquer cuidado, manipulam recursos que o Tesouro recolhe do contribuinte, com a preocupação única de atender a seus interesses particulares e corporativos. A virtual instituição do financiamento público integral da política cavou mais um poço sem fundo nas finanças da União.
Grupos políticos que se esforçavam para aprovar o financiamento público integral e a adoção do sistema eleitoral por lista fechada, para aumentar o poder dos caciques partidários — o PT sempre esteve à frente deste bloco —, conseguiram uma grande vitória, mesmo parcial.
Não veio o voto em lista, mas foram usados com esperteza os escândalos do petrolão e outros, em que grandes empresas privadas se envolveram em esquemas políticos para assaltar estatais (Petrobras, Furnas, Eletrobras etc.), com a finalidade de levar o Supremo a ver no financiamento público a chave da moralidade.
Vetada a contribuição de empresas a partidos e candidatos, a criatividade que políticos e legendas dirigiam à montagem dos caixas 2 — ninguém pode garantir que deixaram de existir — passou a ser canalizada para o Orçamento anual no Congresso.
Conseguir o máximo de recursos do Tesouro para os Fundos Partidário e Eleitoral, além de aprovar regras lenientes a fim de permitir gastos pouco ortodoxos, passou a ser o grande objetivo.
A comissão mista (CMO) fixou no Orçamento do ano que vem, quando haverá eleições municipais, a dotação de R$ 3,8 bilhões para o Fundo Eleitoral, quase o dobro da proposta original.
Em uma fase de restrições fiscais, não é medida aconselhável. Mas como a intenção é mesmo abastecer as campanhas do ano que vem com dinheiro farto, o Congresso teria cortado em outras rubricas do Orçamento para engordar o Fundo Eleitoral.
A manobra foi desmentida. Os recursos virão, explica-se, de um excedente bilionário no pagamento de dividendos das estatais ao Tesouro, não contabilizado pelo Ministério da Economia na proposta orçamentária. Seja como for, na situação em que se encontram áreas vitais, haveria melhor destino para o dinheiro.
Cabe ao presidente Bolsonaro vetar o inchaço do Fundo Eleitoral. A questão, porém, é mais ampla, tem a ver com o sistema de financiamento instituído depois que o STF alijou as empresas das finanças da política. A realidade mostra que este mundo continua envolto em sombras, com o Tesouro pagando uma conta crescente. Trocou-se o custo da corrupção arcado pelo contribuinte pelo preço da avidez do Congresso em inflar o orçamento da política, também pago pelo Erário.
É preciso repensar as contribuições de empresas em novos moldes, assentados num sistema de freios e contrapesos que, além de reduzir o fardo sobre os contribuintes, garanta a lisura entre partidos, políticos e seus financiadores.
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