Entrevista com Rubens Ricupero, ex-ministro da Fazenda e ex-embaixador em Washington
Para ex-embaixador em Washington, governo precisa perceber que, neste mundo de competição pelo comércio internacional, o interesse do Brasil é permanecer autônomo
Douglas Gavras | O Estado de S.Paulo
No início desta semana, o governo do presidente Jair Bolsonaro foi surpreendido por uma mensagem publicada pelo colega dos Estados Unidos, Donald Trump, em seu perfil no Twitter. Trump anunciava a retomada imediata das tarifas americanas sobre o aço e o alumínio brasileiros e argentinos, em resposta à desvalorização das moedas dos dois países, que estaria sendo patrocinada pelos governos.
Na avaliação do ex-ministro da Fazenda e do Meio Ambiente Rubens Ricupero, o governo tem colecionado derrotas na condução dos interesses do Brasil no exterior e foi ingênuo ao imaginar que seria vantajoso se alinhar aos Estados Unidos.
Ricupero, que também foi embaixador do Brasil em Washington e representante na Organização das Nações Unidas (ONU), avalia que a economia tem dado sinais de recuperação, mas que as medidas tomadas até agora, como a redução dos juros e a liberação de recursos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), têm efeito limitado e devem durar até o início do ano que vem.
A seguir, trechos da entrevista ao Estado:
• Que lições a ameaça de taxação ao Brasil, feita pelo presidente Donald Trump, deixa em relação à condução atual da política externa do Brasil?
Esse episódio tornou patente o que já sabíamos: que era uma grande ficção a ideia de que o presidente Bolsonaro e seu filho Eduardo tinham canal direto com Trump. O que podemos notar é que as nossas relações internacionais estão baseadas em premissas totalmente falsas, é uma visão alienada em relação ao mundo e em relação ao Brasil. O governo precisa perceber que, neste mundo de competição pelo comércio internacional, o interesse do Brasil é permanecer autônomo e ter o máximo de ganhos em cada negociação. É ingênuo se alinhar com uma potência.
• O governo se precipitou ao abrir mão da exigência de vistos para turistas americanos sem contrapartida ou abrir mão do tratamento especial na Organização Mundial do Comércio (OMC)?
No caso dos vistos, é possível justificar um pouco pelo interesse brasileiro no turismo, que pode ser facilitado. Mas as outras medidas são mais graves, como abrir mão do tratamento especial diferenciado na OMC e nas negociações comerciais em troca do apoio pela entrada na OCDE (espécie de clube dos países ricos). Não tem cabimento abrir mão de uma vantagem que é dada a países com o status do Brasil, que é um país em desenvolvimento e precisa de prazos mais amplos ou de menores concessões de tarifas. China e Índia jamais aceitaram isso. Em troca de um apoio incerto dos Estados Unidos, o governo abriu mão de vantagens concretas.
• Entrar na OCDE, como defende o ministro Paulo Guedes, é realmente vantajoso para o Brasil?
Caso não fosse acompanhada dessas exigências, teria um efeito positivo, mas a ideia de que ser membro seria uma vacina contra políticas econômicas equivocadas é errada. A Grécia sempre foi parte da OCDE, o México também. Não significa grande coisa.
• Que preço o Brasil pode pagar por um alinhamento automático aos EUA?
A ideia de o Brasil ser um dos aliados principais fora da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) é um equívoco. Aliado significa escolher um lado - neste caso, o americano, que está em conflito com países como China e Rússia, com os quais o Brasil não está em conflito neste momento. No caso da China, no momento em que se fez o último leilão de petróleo, as únicas empresas estrangeiras que participaram eram chinesas. Quando o Brasil precisou, quem socorreu não foi o governo Trump. Imagine se o deputado Eduardo Bolsonaro tivesse mesmo virado embaixador nos Estados Unidos e a gente acordasse com esse tuíte do Trump? Seria um vexame maior.
• O Brasil tem falhado na defesa de seus próprios interesses comerciais?
Eu respondo com uma pergunta: como se explica que, tendo tantos equívocos acumulados, nada mude na política externa? Nem no titular do Ministério das Relações Exteriores, nem na orientação que o ministro (Ernesto Araújo) recebe. O governo está satisfeito com o Paulo Guedes, na Economia, porque há alguns sinais de retomada do crescimento. Na política externa, os resultados são todos negativos. A minha explicação é que, nas áreas que estão mais próximas do núcleo ideológico do governo, o importante não é o resultado, mas o alinhamento com a ideologia de Olavo de Carvalho. No meio ambiente ou na educação, é a mesma coisa, porque esses outros ministros também estão afinados com esse núcleo duro.
• O que explica isso?
A meu ver, a explicação é que o presidente é indiferente à esfera internacional. O fato é que políticas de algumas áreas, como o meio ambiente, preocupam compradores internacionais dos produtos brasileiros e tornam mais difícil para o País vender lá fora. Mas têm pouco efeito sobre o presidente. Essas nomeações provocativas em órgãos da cultura e de direitos sociais que o governo faz agradam a esse núcleo mais fanatizado, mas assustam o restante da sociedade. O governo tem uma visão perversamente distorcida da avaliação do seu próprio desempenho.
• Na economia, esse desempenho tem sido melhor?
A condução da economia (com juros mais baixos, melhoria do crédito, liberação do FGTS) vai dar uma espécie de alívio para o País respirar. Isso deve durar até março do ano que vem. E, se tudo continuar bem, é bastante plausível que o Brasil cresça 2% em 2020. Mas não é suficiente para reduzir o número altíssimo de desempregados. Precisaria acelerar para 3,5%, 4%, e só com investimento público é que se poderia chegar a isso. Vejo uma melhora da atmosfera, mas muito limitada.
• Qual seria a saída?
Não há outra saída sem investimento público. Só pode ter crescimento por investimento ou consumo. O consumo é limitado pelo número de desempregados, e a demanda vai bater logo no teto. E o investimento privado pode aumentar, mas não no nível necessário, sobretudo em infraestrutura, que depende do investimento público. Nenhum investidor de fora vai se arriscar em aportes que demoram 20 ou 30 anos para serem amortizados.
• O investidor estrangeiro não está esperando o andamento das reformas para voltar os olhos para o Brasil?
A economia internacional cresce menos do que se esperava, o comércio internacional está caindo e não há perspectivas de melhora. O nosso superávit comercial também está em queda. Do lado externo, não há nada a esperar. E investimentos vultosos do exterior dificilmente virão quando, além das incertezas, fatores como a declaração de um novo AI-5 do ministro Guedes e do filho do presidente vêm a público. Essas coisas causam muita inquietação.
• As declarações sobre um novo AI-5 vieram como uma resposta, caso o Brasil enfrente ondas de protestos nas ruas, como os que ocorrem no Chile e na Colômbia. Esse temor do governo é justificado?
Isso só mostra a incapacidade brasileira de captar a realidade à sua volta. O que há na América Latina são manifestações contra políticas econômicas de inspiração ultraliberal, como as que o Brasil adota agora. No Chile e na Colômbia, a insatisfação é com excessos que houve com o liberalismo. O México mudou essa rota, com a eleição de Andrés Manuel López Obrador. A Argentina também está mudando, com a volta do peronismo ao poder. O Brasil precisa de uma dose de liberalismo, mas não se pode fazer isso sem levar em conta o enorme número de desempregados e de pobres que nós temos. Esse tipo de insensibilidade em relação ao lado mais vulnerável é justamente o que acaba alimentando as manifestações. Não é o liberalismo correto, mas uma espécie de cegueira para o lado social.
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