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Esperanças destruídas
Digamos que um pico de energia, na noite do temporal que afogou parte do Rio na semana passada, provocou o incêndio que torrou vivos os 10 garotos alojados nos contêineres do Campo de Treinamento do Flamengo. E daí? O clube seria menos culpado pelo que aconteceu?
Quantos picos de energia foram registrados naquela noite? Em que pontos da cidade? Quantas vezes os bombeiros foram acionados para apagar incêndios? Há dispositivos que impeçam a passagem de fogo de um aparelho de ar condicionado para outros? Havia algum no Campo de Treinamento do Flamengo?
Na ausência dos pais, o Flamengo era o responsável pela integridade daqueles garotos. Dava-lhes de comer. Dava-lhes abrigo. Zelava por sua higiene. Afinal, a quem por contrato eles serviriam no futuro caso fossem escolhidos para isso? Quem mais lucraria com o eventual sucesso deles?
O Flamengo não pediu autorização para instalar contêineres no Centro de Treinamento do clube. Quer dizer: descumpriu a legislação ao instalar os contêineres no Ninho do Urubu sem a prévia autorização legal. Oficialmente, aquele local não existia. Era uma área destinada a estacionamento.
O Centro de Treinamento foi fechado pela prefeitura em outubro de 2017. Fechado deveria estar, pois. O Flamengo ignorou a ordem e reabriu-o. Não satisfeito de desrespeitar ordem de autoridade pública, construiu um alojamento para os garotos sem nunca ter pedido licença para sua instalação.
“Isso não tem nada a ver com o acidente”, desculpou-se Reinaldo Belotti, o CEO do Flamengo, em pronunciamento que fez ontem sob a condição de não responder a perguntas de repórteres. “Temos providências a tomar para que o Centro de Treinamento seja legalizado. Estamos trabalhando para isso”.
Belotti pode dizer o que quiser, como qualquer outro dirigente do clube. Mas o alojamento carecia das mínimas condições de segurança para prevenir um evento como o que ocorreu. Só havia uma porta de saída, exígua. Extintores de fogo? Só do lado de fora. Se isso não configura negligência, o que negligência é?
De um total de 31 multas aplicadas pela prefeitura ao Flamengo desde outubro de 2017 por ele manter em funcionamento o que fora lacrado, o clube pagou 10 e deixou de pagar 21. Ao pagar algumas sem contestar foi porque reconheceu que seu Centro de Treinamento estava fora da lei. Simples assim.
Segundo a Lei 9.615, chamada de Lei Pelé, cabe à Confederação Brasileira de Futebol (CBF) certificar clubes formadores de atletas. Ao certificar o Flamengo, ela garantiu o funcionamento do seu Centro de Treinamento, embora ele fosse ilegal, e embora o próprio Centro tivesse sido interditado.
Ao jornal Folha de S. Paulo, a CBF confirmou o certificado, mas disse que a fiscalização do local cabia à Federação de Futebol do Estado do Rio, não a ela. A Lei Pelé diz que a fiscalização é responsabilidade da “entidade nacional”. Ou seja: da CBF. A Federação informa que nada tem a ver com isso.
A Lei Pelé determina que clube formador de atletas está obrigado a manter alojamentos e instalações desportivas adequados, sobretudo em matéria de alimentação, higiene, salubridade e segurança. Como demonstrado, segurança contra incêndio não havia no alojamento clandestino dos garotos.
Certamente nenhum diretor do Flamengo irá para a cadeia porque o clube falhou em garantir a vida de quem estava aos seus cuidados. Mas não basta que o clube indenize as famílias dos incinerados, a única esperança que elas tinham de sair da pobreza. Terá de bater no peito e reconhecer sua máxima culpa.
Um crime não é menos crime porque se insiste em chamá-lo de acidente. Crime é crime, ponto. E o Ninho do Urubu foi cenário de um.
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