domingo, 22 de março de 2020

Bernardo Mello Franco - O presidente no parquinho

- O Globo

Políticos temem que Bolsonaro tente usar a crise para concentrar poderes. É o que têm feito outros líderes de extrema direita, como o húngaro Viktor Orbán

Jair Bolsonaro completou ontem 65 anos de idade. Diante da epidemia que ameaça os brasileiros, comporta-se como uma criança de 5. Em vez de liderar o país, o presidente faz birra contra as medidas de isolamento. É como se a quarentena, necessária no combate à doença, fosse uma grande conspiração para impedi-lo de brincar no parquinho.

Na contramão de autoridades responsáveis, o capitão teima em deseducar o povo. Na sexta, chamou o coronavírus de “gripezinha”. No mesmo dia, o número de mortos pela infecção ultrapassou os dez mil em todo o mundo.

Mais tarde, ele incentivou o rebanho a continuar se aglomerando em shoppings e igrejas. “A chuva tá vindo aí, você vai se molhar. Agora, se você botar uma capinha aqui, tudo bem. Passa”, desdenhou. A declaração foi ao ar no programa do Ratinho, famoso por promover espetáculos bizarros na TV.

Não há guarda-chuva contra Bolsonaro. Obcecado com a reeleição em 2022, o presidente sabota o próprio ministro da Saúde e ataca governadores que tentam retardar o contágio em seus estados. Parece maluquice, mas é só despotismo. Na mente do capitão, quem não lambe botas deve ser tratado como inimigo de guerra.

A perspectiva de uma crise longa tem turbinado a paranoia presidencial. Na segunda-feira, Bolsonaro descreveu as medidas de distanciamento social como parte de uma trama para derrubá-lo. “Se afundar a economia, acaba com o meu governo. É uma luta de poder”, afirmou, como se todos os países que adotaram essas restrições integrassem o mesmo complô imaginário.

Fora da redoma bolsonarista, a assombração é outra. Políticos de diferentes partidos temem que o presidente use o agravamento da epidemia como pretexto para tentar concentrar poderes. É o quem têm feito outros líderes de extrema direita, como o húngaro Viktor Orbán.

A preocupação já levou o Congresso a mudar o decreto que reconheceu o estado de calamidade pública no país. Na nova redação, proposta pelo deputado Alessandro Molon, o texto passou a deixar claro que o Planalto só está autorizado a descumprir as metas fiscais. Isso significa que o presidente não poderá tomar outras medidas excepcionais por causa da pandemia.

Em outubro passado, o clã Bolsonaro usou o fantasma das manifestações em Santiago para sonhar alto com uma escalada autoritária. O tumulto chileno não chegou ao Brasil, mas agora existem razões para projetar um quadro de colapso na saúde, depressão econômica e desagregação social.

No playground ideológico do bolsonarismo, o fetiche de um “novo AI-5” convive com a ideia de decretar estado de sítio. Ontem a Ordem dos Advogados do Brasil julgou necessário emitir um parecer sobre o assunto. “Não há dúvida de que a situação atual produz sensações de pânico e terror na população. Esses sentimentos não podem, no entanto, ser explorados para autorizar medidas repressivas e abusivas que fragilizem direitos e garantias constitucionais”, afirmou a entidade.

Na véspera, Bolsonaro disse que seria “relativamente fácil” decretar estado de sítio, mas informou que a ideia “ainda” não está em seu radar.

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