Crise demonstra que dogmas ideológicos são deixados de lado quando a sociedade está em risco
O secular conflito entre as correntes econômicas “desenvolvimentistas” e “liberais” está misturado na crise do coronavírus. Talvez porque o tamanho do problema, relacionado à saúde das pessoas e ao seu emprego, seja imenso e tenha crescido para a maioria dos brasileiros de uma hora para outra — embora já fosse vislumbrado há várias semanas —, este velho conflito político, ideológico e até acadêmico tenha ficado em segundo plano até agora. O risco real de morte para milhares de pessoas no país, numa epidemia que ecoa a ficção científica, tem efeito paralisante. E não tem havido espaço, em todos os sentidos, para outras preocupações. Mas a decisão do governo de adiar a meta fiscal, para gastar o possível a fim de salvar vidas e evitar uma depressão, reacende velho conflito entre “desenvolvimentistas”e “liberais”.
A administração de Dilma Rousseff foi interrompida em 2016 pelo impeachment aprovado no Senado em processo instaurado devido ao desrespeito da presidente a normas de responsabilidade fiscal. Dilma caiu por excesso de “desenvolvimentismo”, ao aplicar dogmaticamente a fórmula keynesiana de que recessão se supera com gastos públicos crescentes. Depende, como a gestão da petista demonstrou.
PT, Dilma e Lula passaram para segundo plano na política, por decisão dos eleitores e de juízes, no caso do ex-presidente, até em 2018 a extrema direita de Jair Bolsonaro chegar ao Planalto, no ápice da perda de popularidade da esquerda brasileira. Com o desembarque do coronavírus e, na sua esteira, uma profunda recessão mundial, ainda sendo formada, os países estão sendo obrigados a relaxar controles monetários e fiscais. Nenhuma novidade, para quem acompanhou a crise mundial iniciada em 2008/9.
O Brasil não poderia ser uma exceção. Mas como o governo que abrirá os cofres é de direita e tem uma equipe econômica “liberal”, a guinada está sendo propagandeada como a suprema vingança dos “desenvolvimentistas”. Mais do que isso, a confirmação da superioridade indiscutível de políticas “intervencionistas” sobre estratégias “ortodoxas”.
Mais um reducionismo. No mundo das ideias, sem contaminações ideológicas, não existem políticas de “direita” ou de “esquerda” contra um buraco negro que ameaça destruir o sistema produtivo e, por consequência, a sociedade. Por isso, o capitalismo americano, nos desdobramentos da crise de 2008/9, estatizou bancos, a GM, Chrysler etc. Depois vendeu as ações, e o Tesouro ainda obteve lucro. O governo francês de Emmanuel Macron já avisou que fará o mesmo, se for necessário.
A dupla Lula/Dilma acertou nos primeiros momentos daquela crise, em tomar medidas de liberação de crédito, usando bancos públicos, para se contrapor às ondas de propagação recessivas que se espalhavam pelo mundo. Guardadas as proporções, é o que começa a ser feito agora.
Mas erraram ao manter o expansionismo como se pudesse ser uma política permanente. Perenizaram o tratamento de choque e assim quebraram tecnicamente o Tesouro e colocaram a economia em recessão, por destroçar as contas públicas, criar insegurança, piorar as expectativas. Essa história não deve, nem pode, se repetir.
Nenhum comentário:
Postar um comentário