- Folha de S. Paulo / Ilustríssima
Bolsonaro, por outro lado, já demonstrou que não está nem aí para a sobrevivência da espécie
O malaio-taiwanês Tsai Ming-Liang, diretor de “Dias” (“Rizi”), saiu da mostra competitiva do Festival de Berlim com as mãos abanando (levou, como consolação, o Prêmio do Júri do Teddy Awards, certame independente para filmes com temática LGBT). Dá para entender. No limite entre o insuportável e a epifania, “Dias” é uma experiência demasiado radical, uma obra-prima.
O sentido político desse filme urgente e fundamental está na própria forma. “Dias” é composto por planos longuíssimos que registram alternadamente, com a câmera parada, como se tivesse sido esquecida num canto da sala, e em tempo real, sem cortes nem elipses, o cotidiano de dois desconhecidos.
O taiwanês Kang (Lee Kang-Sheng) é um homem de meia-idade que passa a vida em quartos de hotel, cria carpas e, para combater a dor, submete-se a aplicações de moxa que mais parecem sessões experimentais de tortura. O jovem tailandês Non (Anong Houngheuangsy) leva uma vida solitária num apartamento modesto em Bangkok, onde prepara sua comida à maneira metódica de um ritual. Cada um manifesta a seu modo uma resignação silenciosa diante do real.
O insuportável não é portanto apenas a forma do filme em si (os planos-sequência, a câmera parada, o tempo real), mas o sentido de ruptura que essa forma impõe à percepção do tempo que corresponde à fantasia infantilizada das nossas narrativas. É um sentido político do qual estamos cada vez mais apartados por uma organização virtual e narcisista do mundo, que nos leva a apagar (ou cancelar) tudo o que nos contradiz, como crianças inconformadas diante das contrariedades.
Recebemos o troco desse prazer onipotente e inconsequente ao entregarmos o destino de nossas vidas, sempre pensando em corresponder à ilusão da nossa fantasia, a quem também vive de negar os fatos, só que nesse caso por um oportunismo que terminará por nos matar.
Lá pelo meio do filme, os dois desconhecidos se encontram. Kang recebe Non em seu quarto de hotel. A câmera registra em tempo real uma sessão de massagem e sexo. E a seguir, num movimento cúmplice e incomum que resulta da solidariedade no abandono e que tem a ver com um entendimento tácito do real, Kang presenteia Non com uma caixinha de música e o convida para jantar. Daí em diante, cada um segue seu caminho, levando daquele encontro a consciência do outro.
É essa consciência que Frank M. Snowden, professor emérito de história da medicina em Yale, supõe que as epidemias despertem. Em entrevista à revista The New Yorker, ele diz: “As epidemias são uma categoria de doenças que, como um espelho, confrontam-nos com quem realmente somos. (...) Para enfrentá-las, é fundamental tomar consciência de que estamos todos juntos, fazemos parte da mesma espécie, o que afeta uma pessoa afeta todas as outras, sem divisões de raça ou status econômico.”
Tomar consciência do outro, trazer em si a consciência do outro, é o oposto do que Bolsonaro tenta em benefício próprio. O partido da ignorância, que não se reduz ao presidente, propõe ações contra a ciência e as universidades brasileiras, mas depende dos quadros e da excelência científica dessas universidades para continuar vivo, conclamando a população contra a razão.
Sem a ciência que o governo ataca em nome das trevas, uma catástrofe de proporções inéditas seria inevitável e suficiente para derrubá-lo. O mesmo acontece em relação aos ataques contra o Estado e as instituições, como se fosse possível vencer crises como a atual sem um sistema são e eficaz de saúde pública.
Como o cliente seduzido pela gratuidade oferecida como isca pelas grandes corporações de internet, sem entender que, ao aceitar a oferta como uma criança que ganha um pirulito, dá sua vida em troca, de mão beijada, também o sujeito que defende o estrangulamento do Estado, por interesse próprio e privado, é um suicida inconsciente. A epidemia afinal o confronta com sua própria imagem.
Bolsonaro já demonstrou que não está nem aí para a saúde pública, assim como escarnece da sobrevivência da espécie e do planeta. Interessa-lhe apenas manter-se no poder a qualquer preço. Nesse sentido, o presidente de fato representa o eleitor que clama pelo AI-5 para calar quem (ou o que) o contraria.
O bolsonarismo está ligado à negação do real, do outro e da morte, enquanto a alimenta. Ele toma corpo no ilogismo, no ataque à razão e à ciência, para estabelecer à força um mundo de fantasia, onde a morte é ao mesmo tempo irrealidade e o objetivo final, porque ela é sempre a morte dos outros. A negação da epidemia apenas expõe mais uma vez o caráter suicida do pacote.
*Bernardo Carvalho, romancista, autor de "Nove Noites" e "Simpatia pelo Demônio".
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