Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Hoje, o presidente se refugia num discurso cada vez mais beligerante e ideológico, e busca proteção nos militares e na ameaça da volta do petismo
Produzir factoides é a principal estratégia de governar do bolsonarismo. Desde o início do governo, os brasileiros são brindados todos os dias com uma nova história, uma frase de impacto ou alguma notícia que nunca se concretizará. Nesta novela, é preciso lutar incessantemente com inimigos, reais ou imaginários, e a emoção prevalece sobre a razão. Por enquanto, mesmo tendo um mandato atribulado em tão curto espaço de tempo, Bolsonaro mantém o apoio de um terço da população e sonha com a reeleição. Mas será que esse modelo será capaz de lidar com a imensa crise que o Brasil enfrentará neste ano?
Apesar de as ações do governo Bolsonaro parecerem muitas vezes irracionais e de difícil explicação, é possível definir os desafios que ele vai enfrentar e dizer se seu estilo é eficaz para lidar com tais situações. Para desenvolver este argumento, a visão de Maquiavel, pai da teoria política moderna, é essencial.
O grande filosofo florentino dizia que duas categorias são centrais para analisar as lideranças políticas. A primeira é a fortuna, que representa a situação objetiva de cada época, ao passo que a segunda é a virtù, que diz respeito às habilidades políticas dos líderes.
Só que não há uma única forma de se fazer política, pois cada momento exige características distintas dos governantes. O que pode ser eficaz num determinado caso pode não ser noutro, e o político bem-sucedido, na visão de Maquiavel, é o que consegue se adaptar a realidades diferentes, que exigem estratégias específicas.
Na eleição de 2018 houve um casamento perfeito entre a fortuna e a virtù de Bolsonaro. Ele percebeu que a maior parte do eleitorado queria um candidato que combinasse duas características: ser antipetista e “outsider”. Assim, tendo os petistas e a classe política tradicional como principais inimigos, construiu uma campanha em nome da renovação - embora ele mesmo fosse deputado há 28 anos, o público o percebeu como um novo “condottiere”. O destino, ademais, trouxe-lhe um episódio paradoxal: a facada, que quase o matou, mas que lhe deu mais força eleitoral.
O contexto do primeiro ano de governo era todo favorável ao novo presidente. Alta popularidade, expectativas muito positivas, Congresso a favor de reformas como nunca antes, oposição dividida e enfraquecida. Bolsonaro poderia ter montado uma coalizão parlamentar com pouquíssimo esforço em termos de divisão de poder.
O destino sorriu para o novo presidente, mas ele escolheu um caminho que se relacionava mais com a eleição do que com a sua nova situação de governante. O bolsonarismo preferiu manter-se constantemente no palanque eleitoral, montando um governo orientado para a eliminação de qualquer possível adversário político, já com vistas a 2022.
A opção poderia ter sido outra: um governo baseado em diagnósticos e gerenciamento de políticas públicas, porém, isso poderia ter tirado a aura daquele que propunha fundar uma nova política. Afora isso, o grupo que circundava Bolsonaro e suas próprias características como líder que exige obediência canina resultaram numa equipe que, com algumas honrosas exceções, é majoritariamente composta por gente incompetente e/ou caracterizada por um fanatismo ideológico.
A base da estratégia política bolsonarista foi centrar-se na produção cotidiana de factoides, seja para fazer do governo um eterno movimento político em guerra contra inimigos, seja para esconder os erros e a incapacidade governamentais. O presidente e sua família fazem isso com o auxílio do guru de Virginia e de todo um exercito nas redes sociais. Outros ministros também seguem essa linha, como os titulares do MEC e do Ministério das Relações Exteriores.
A lógica dos factoides foi reforçada, ainda, pela primazia da lógica dos valores sobre a orientação pragmática por resultados das políticas públicas. A insistência cada vez maior na defesa da família e dos princípios cristãos é uma forma não só de fidelização de eleitores.
Trata-se de uma escolha de quem não tem tanta virtù em termos de competências básicas para ser um governante democrático, afinal, as negociações políticas e a administração das políticas públicas não são tão emocionantes.
A partir do segundo semestre de 2019, a insistência nos factoides produziu vários conflitos desnecessários e atrasou o avanço de várias ações governamentais, além de ter reduzido em mais de 20 pontos a popularidade presidencial. Todavia, o presidente manteve essa estratégia por três razões.
A primeira é que a fortuna do primeiro ano lhe protegia: tanto a lua de mel com o povo como o discurso contra a “herança maldita” seguravam o governo. A segunda é que ela definia bem quem eram os amigos e os inimigos, mantendo o seu público mais fiel. Por fim, as instituições e atores que poderiam contrabalancear o poder do Executivo federal foram muito cooperativos, especialmente o Congresso Nacional, cujos líderes abraçaram uma agenda reformista e estão ainda traumatizados pela desorganização do sistema político pós-impeachment.
O inicio de 2020 foi marcado pela confluência de várias crises, numa tempestade perfeita tão grande como a que atingiu o segundo mandato de Dilma. No plano interno, a aproximação das eleições municipais tornou mais evidentes os problemas. Desse modo, a decepção com o PIB de 2019, o acirramento do conflito com os governadores e com o Congresso Nacional, a desestruturação do partido do presidente (sem que nada ocupasse esse lugar), além da decepção dos bolsonaristas-raiz que queriam uma mudança mais rápida e profunda, aumentaram o sectarismo de Bolsonaro. Hoje, ele se refugia num discurso cada vez mais beligerante e ideológico, e busca proteção nos militares e na ameaça da volta do petismo.
No entanto, o vendaval internacional ampliou a dimensão da crise interna, numa escala inimaginável há alguns meses. São muitos problemas que se combinam num só tempo: a expansão imprevisível do coronavírus (ou Covid-19), a disputa petrolífera, a incerteza política e econômica entre e dentro das grandes potências (EUA, China e União Europeia). Enfim, todos estes fatores, somados, vão reduzir o crescimento econômico do mundo e do Brasil.
A fortuna mudou drasticamente e Bolsonaro, se quiser tirar o Brasil dessas crises e manter seu poder político, precisará ter virtù suficiente para mudar seu estilo governativo. Para atravessar essa enorme tempestade de eventos negativos e num ano eleitoral, o presidente não poderá governar apenas por factoides. Ele terá de fazer três coisas que implicam alterar seu modelo de governo.
A primeira mudança é aumentar sua capacidade de dialogo com outras instituições. Numa crise, um presidente precisa mostrar que é capaz de tomar decisões efetivas. Isso só será possível conversando mais com o Congresso e outros atores políticos fundamentais. Não adianta jogar o povo contra o sistema representativo, a não ser que se queira dar um golpe. Adotar esse caminho, no momento, só agravaria a crise, com efeitos como, por exemplo, a subida vertiginosa do dólar e o enfraquecimento frente aos parceiros internacionais. Nem Trump o apoiaria, porque tem uma eleição por vencer e não pode carregar esse fardo.
A segunda transformação seria dar um perfil mais técnico e gerencial ao seu mandato. A instabilidade do governo Bolsonaro cresce porque muita gente não confia em sua capacidade de tomar as decisões certas no campo das políticas públicas. Imagine se o presidente tivesse colocado alguém como Weintraub no Ministério da Saúde. A guerra ideológica produziria pânico e incompetência, o que levaria a um derretimento da popularidade presidencial. Sorte do país que alguém que conhece bem os aprendizados em relação ao SUS e tem interlocução com os especialistas da área hoje coordena a atuação frente ao coronavírus. Se houvesse alguém comandando o MEC que entendesse de Educação e tivesse articulação com os atores da política educacional, o governo ganharia créditos com a sociedade.
A busca do pragmatismo, por fim, deveria ser a principal alteração no modelo bolsonarista de governar. Ser pragmático é conversar com setores sociais que vão além do bolsonarismo, afinal, numa crise é preciso unir, mais do que dividir o país. Além disso, adotar uma postura pragmática é saber adaptar e inovar nas políticas públicas frente às intempéries. Um liberalismo econômico cego nos levará para uma situação tão ruim quanto a nova matriz econômica de Dilma. O problema é que Bolsonaro só sabe professar ideologias e não entende de combinações de modelos, que exigem maior capacidade técnica do que decorar cartilhas.
Um governo mais aberto à negociação e à crítica, mais qualificado tecnicamente e mais pragmático é o que precisamos para sair dessa enorme crise. Se Bolsonaro não conseguir seguir essa trilha, não só o país sofrerá muito, como seu capital político será reduzido. O fato é que a crise faz com que os factoides fiquem cada vez menos engraçados, e os eleitores desejem menos mitos e mais resultados.
Uma última nota: numa crise tão complexa como essa, e com um debate tão polarizado e ideologizado, como faz falta a capacidade analítica de Celso Pinto! Eu aprendi com ele, ainda como repórter, a ser generoso com o mundo e rigoroso com os fatos. Precisamos de lideranças que pensem assim, em todos os campos da vida social.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e chefe do Departamento de Administração Pública da FGV-SP
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